mercredi 28 septembre 2011

O TEMPO E O TÉDIO


Com respeito à natureza do tédio encontram-se freqüentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do seu conteúdo "fazem passar" o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e o vazio estorvam e retardam o seu curso. Mas não é absolutamente verdade. O vazio e a monotonia alargam por vezes o instante ou a hora e tornam-nos "aborrecidos"; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada.

Um conteúdo rico e interessante é, pelo contrário, capaz de abreviar uma hora ou até mesmo o dia, mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de tal maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e voam. Portanto, o que se chama de tédio é, na realidade, antes uma simulação mórbida da brevidade do tempo, provocada pela monotonia: grandes lapsos de tempo quando o seu curso é de uma ininterrupta monotonia chegam a reduzir-se a tal ponto, que assustam mortalmente o coração; quando um dia é como todos, todos são como um só; e numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos.

O hábito é uma sonolência, ou, pelo menos, um enfraquecimento do senso do tempo, e o fato dos anos de infância serem vividos vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa, esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio de manter a nossa vida, de refrescar a nossa sensação de tempo, de obter um rejuvenescimento, um reforço, um atraso da nossa experiência do tempo, e com isso, a revolução da nossa sensação da vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio: nisso reside o que há de salutar na variação e no episódio.

Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo - seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se "aclimata", começa a senti-los abreviarem-se: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de apegar-se à vida nota, com horror, como os dias começam a tornar-se leves e furtivos; e a última semana - de quatro, por exemplo - é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo faz-se sentir para além do interlúdio, e desempenha o seu papel ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois desta variação, afiguram-se-nos também novos, amplos e juvenis, mas somente uns poucos: porque a gente acostuma-se mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão, e quando o nosso senso do tempo está fatigado pela idade, ou nunca o possuímos desenvolvido em alto grau - o que é sinal de pouca força vital - volta a adormecer muito depressa, e ao cabo de vinte e quatro horas já é como se a pessoa jamais tivesse partido e a viagem não passasse de um sonho de uma noite.

Thomas Mann

vendredi 16 septembre 2011

Por uma espiritualidade sem Deus



Entrevista com Luc Ferry
Luc Ferry, filósofo, ex-ministro francês da educação, professor da universidade de Paris VII, afirma existir “uma espiritualidade leiga, que constitui o núcleo da filosofia” .
No livro Aprender a Viver, o senhor coloca filosofia e religião como modos opostos de entender o mundo e de se relacionar com a morte. É possível ser filósofo e ter fé ao mesmo tempo?
No meu livro, mostro como filosofia e religião têm fundamentalmente o mesmo objetivo: ajudar os homens a superar os medos – em particular, o medo da morte -, que os impedem de ter acesso a uma vida boa, ou seja, à serenidade e à liberdade. Só que a religião o faz através da fé e de Deus, enquanto a filosofia nos promete que isso é possível através da razão e por nós mesmos. Aí está a verdadeira diferença. É claro, todos nós sabemos que há, apesar de tudo, uma filosofia cristã, uma filosofia judaica, uma filosofia muçulmana. Como se explica? Tomemos o caso do cristianismo: existe uma filosofia cristã ou, se preferirem, um uso da razão no cristianismo por duas razões essenciais: compreender e interpretar, de um lado, os textos sagrados e, de outro, a natureza, que é a obra do criador. Mas quando se toca na questão essencial, ou seja, na questão da salvação, na questão crucial daquilo que nos “salva” dos medos, então a religião fica acima da filosofia, e a fé suplanta a razão. Nas grandes religiões, o status da filosofia é, portanto, sempre secundário, subordinado.
O senhor diz que a filosofia contemporânea conserva o estatuto servil e secundário a que foi submetida com a vitória do cristianismo sobre o pensamento grego. Qual deveria ser hoje o papel da filosofia?
Sim, é verdade. No cristianismo, como eu disse, a filosofia passa a ser secundária. Torna-se, como se dizia na Idade Média, uma “escolástica”, uma disciplina escolar, cujo principal papel acaba reduzido à análise das grandes noções abstratas: a verdade, a justiça, o belo, a substância, o acidente etc. Perde todo o vínculo que tinha, na Grécia, com a questão crucial da vida boa. Ora, penso que, hoje, a questão essencial é justamente esta: os homens sempre precisam livrar-se dos medos que os afligem para finalmente se tornarem livres, abertos aos outros, capazes de agir e de amar em vez de ficarem imobilizados por angústias e egoísmos. Em outras palavras, se não temos uma crença, precisamos de uma sabedoria leiga, de uma espiritualidade sem Deus, e é o que a filosofia deve nos dar. Como, por exemplo, viver o luto de um ser amado? Não é porque não se tem uma crença que essa questão não vai surgir, e a filosofia, neste caso assim como em outros, nos ajuda a pensar e a viver.
Como o senhor se definiria em relação à religião, ateu ou agnóstico? Quais as implicações morais de uma ou outra opção em relação à fé?
Não sou crente, mas tenho o maior respeito por aqueles que têm fé e nunca tento desviá-los dela. É por isso que sempre me defini mais como agnóstico do que como ateu. Aliás, assim como não se pode demonstrar a existência de Deus, também não se pode demonstrar sua inexistência! Quanto à moral, sabemos desde o século 18 que ela pode muito bem prescindir da religião. Não se deve de modo algum confundir as duas esferas: a moral está essencialmente ligada à questão do respeito pelo outro. A religião está voltada para outras questões: como viver, como enfrentar a morte, qual sentido dar à morte de um ser amado, para que envelhecer, o que fazer com o sofrimento etc. Todas essas questões não são morais; elas pertencem a uma outra esfera, a da espiritualidade. Nesse livro, todo meu propósito é dizer que existe também uma espiritualidade leiga, não religiosa, que constitui o núcleo da filosofia.
O que o senhor responderia aos que dizem que as grandes massas sem acesso à educação precisam da religião para sobreviver?
Em primeiro lugar, eu diria que isso está errado, pois há belas morais leigas e, em segundo, que esse uso utilitarista da religião é a sua mais certa negação. É como dar razão de saída a Marx quando ele diz que a religião é “o ópio do povo”.
Em uma época em que os grandes conflitos permanecem ligados ao fundamentalismo religioso, o que a filosofia tem a ensinar à religião?
É verdade que todas as guerras de hoje ainda são de origem religiosa: é o caso tanto nos Bálcãs quanto no Sudão, na Irlanda, no Oriente Médio. As comunidades que se afrontam sempre o fazem em nome da religião que as uniu. Desse ponto de vista, o discurso filosófico, que visa o universal e tenta superar o comunitarismo, me parece formidavelmente salutar nos dias de hoje…
Para o senhor, a filosofia pode ser um instrumento para enfrentar as inquietações do dia-a-dia, contando com a razão em vez da fé. Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, questionou nossa capacidade de ter controle absoluto sobre nossas ações. A razão pode ser mais forte do que as idiossincrasias ou fragilidades pessoais?
Freud descobre o inconsciente, essa parte de nós mesmos que nos escapa. Ao mesmo tempo, ele é o arquétipo do pensador racionalista: seu propósito é justamente restituir ao sujeito, na medida do possível, o controle daquilo que lhe escapa. Freud concebia seu trabalho intelectual como fator de emancipação. Ele ainda era, nesse aspecto, um homem do Iluminismo. Ao lado da filosofia e da religião, a psicanálise é o terceiro grande discurso destinado a ajudar os homens a livrarem-se dos medos que entravam sua existência e os impedem de serem livres e felizes ou, pelo menos, serenos e sossegados. Esses três discursos são, na verdade, três grandes concorrentes no que diz respeito à salvação.

O Brasil, como o resto do mundo, tem assistido a um fenômeno de popularização da filosofia, com quadros na TV e livros que tentam aproximar o leitor comum do pensamento dos grandes filósofos. Por que esse interesse?

Não se trata de um interesse novo, mas de uma simples volta ao normal, após um período vanguardista e extremamente elitista de “desconstrução” que afastou o grande público da filosofia. Na Antigüidade, as escolas gregas eram abarrotadas. Os livros de Rousseau ou de Kant eram em seu tempo verdadeiros best-sellers e, mais perto de nós, Sartre tinha um público que se estendia muito além do círculo dos “profissionais” da cultura e da vida intelectual. Os anos 1960 simplesmente romperam essa relação, e como hoje estamos saindo desse período, o contato com o público está sendo reencontrado.

Em breve, no Brasil, o ensino de filosofia passará a ser obrigatório em escolas públicas e privadas. O que o senhor pensa dessa obrigatoriedade?

Penso que isso é muito bom, mas com uma condição: não cometam o erro que cometemos na França de elaborar um puro currículo escolástico de “noções” do gênero: o espaço, o tempo, a verdade, a justiça, a arte, a ciência etc. É um absurdo. No ensino, o que é preciso fazer é ajudar as crianças a descobrir as grandes visões do mundo. É definitivamente necessário orientar o currículo para a história da filosofia. Isso desperta a paixão dos alunos, os enriquece e, ao menos, tem-se a certeza de que eles não estão perdendo tempo. Vocês sabem que, para conseguirmos refletir e pensar por nós mesmos, precisamos primeiramente ter a humildade de pensar pelos outros e graças a eles. Nada é mais belo que as grandes filosofias. São elas que devem ser ensinadas antes de qualquer outra coisa.

vendredi 2 septembre 2011

JORNADA A UM MUNDO PERDIDO: OS PRIMÓRDIOS DA CIVILIZAÇÃO




Preservada no santuário de uma caverna por mais de vinte mil anos, uma figura feminina nos fala sobre as mentalidades de nossos ancestrais ocidentais. Ela é pequena e esculpida na pedra: uma das chamadas estatuetas de Vênus encontradas em toda a Europa pré-histórica. Desenterradas em escavações feitas em extensa área geográfica – dos Bálcãs na Europa Oriental ao lago Baikal na Sibéria, indo rumo ao oeste até Willendorf, próximo de Viena e da Grotte du Pape na França —, estas estatuetas têm sido descritas por alguns estudiosos como expressões do erotismo masculino: isto é, um análogo remoto da atual revistaPlayboy. Para outros estudiosos, não passam de artigos utilizados em ritos de fertilidade primitivos e presumivelmente obscenos.


Mas qual o verdadeiro significado dessas esculturas antigas? Podem ser elas realmente tratadas como os "produtos da incorrigível imaginação masculina"? Será que o termoVênus é ao menos apropriado para descrever estas figuras de quadris largos, por vezes grávidas, altamente estilizadas e em geral sem rosto? Ou essas esculturas pré-históricas nos apresentam algo importante a respeito de nós mesmos, de como, um dia, mulheres e homens veneraram os poderes que proporcionavamvida no universo?

O paleolítico Junto com as pinturas murais, santuários em cavernas e sítios de sepultamento, as estatuetas femininas de pessoas do paleolítico são importantes registros psíquicos. Elas confirmam o temor de nossos antepassados, tanto diante do mistério da vida como do mistério da morte.

Indicam que nos primórdios da história humana a vontade de viver encontrou expressão e confiança em diversos rituais e mitos que parecem ter sido associados à crença ainda muito difundida de que os mortos podem voltar à vida através do renascimento.

"Em um grande santuário rupestre como Lês Trois Frères, Niaux, Font de Gaume ou Lascaux", escreve o historiador religioso E. O. James, "as cerimônias deviam representar uma tentativa organizada de parte da comunidade (. . .) para controlar as forças e processos naturais através de meios sobrenaturais voltados para o bem comum. A tradição sagrada, seja em relação ao suprimento de alimentos, ao mistério do nascimento e da reprodução, ou à morte, surgiu e funcionou, ao que parece, em reação à vontade de viver aqui e em outro mundo." A tradição sagrada encontrou expressão na extraordinária arte do paleolítico. Um componente integral dessa tradição sagrada foi a associação dos poderes que governam a vida e a morte com a mulher.

http://www.scribd.com/doc/7388023/O-Calice-e-a-Espada-Riane-Eisler