mardi 14 juin 2011

Materialismo Espiritual



Não importa o que possamos usar para chegar à autojustificação: a sabedoria dos livros sagrados, diagramas ou mapas, cálculos matemáticos, fórmulas esotéricas, religião fundamentalista, psicologia profunda, ou qualquer outro mecanismo. Toda vez que nos pomos a fazer avaliações, decidindo se devemos ou não fazer isto ou aquilo, já teremos associado nossa prática ou nosso conhecimento a categorias contrapostas umas às outras, e isso é materialismo espiritual, a falsa espiritualidade do nosso conselheiro espiritual.

Toda vez que temos uma noção dualística como, por exemplo: "Estou fazendo isto porque quero atingir um determinado estado de consciência, um determinado estado de ser", automaticamente nos separamos da realidade do que somos. Se perguntarmos a nós mesmos: "Que há de mau em avaliar, que há de mau em tomar partido?", a resposta será que, quando formulamos um juízo secundário: "Eu devia estar fazendo isto e devia evitar fazer aquilo", estamos atingindo um nível de complicação que nos faz enveredar por um longo caminho, afastando-nos da simplicidade básica do que somos.

A simplicidade da meditação significa apenas vivenciar o instinto simiesco do ego. Se algo além disso é superposto à nossa psicologia, ela se toma uma máscara muito pesada e espessa, uma armadura. É importante notar que o aspecto principal de qualquer prática espiritual é deixar para trás a burocracia do ego, isto é, deixar para trás o constante desejo do ego de adquirir uma versão mais elevada, mais espiritual, mais transcendental do conhecimento, da religião, da virtude, do julgamento, do conforto ou de qualquer particularidade que um determinado ego esteja procurando. Precisamos deixar para trás o materialismo espiritual. Se não pusermos de lado o materialismo espiritual, se, na verdade, o praticarmos, poderemos, posteriormente, surpreender-nos na posse de uma imensa coleção de caminhos espirituais. Podemos pensar que esse aglomerado espiritual é muito precioso. Estudamos muito.

Talvez tenhamos estudado filosofia ocidental ou filosofia oriental, praticado ioga ou estudado sob a orientação de dúzias de grandes mestres. Conseguimos realizações e adquirimos conhecimentos. Acreditamos ter acumulado um arsenal de conhecimentos. E, no entanto, depois de passar por tudo isso, ainda nos resta abrir mão de alguma coisa. Isso é extremamente misterioso: Como pôde acontecer algo assim? Impossível! Mas, infelizmente, é assim mesmo. Os nossos vastos conjuntos de conhecimentos e experiências são apenas parte da exibição do ego, parte da característica aparatosa do ego. Nós as exibimos ao mundo e, ao fazê-lo, reasseguramo-nos de que existimos, sãos e salvos, como pessoas "espirituais".

Cutting Through Spiritual Materialism
Chögyam Trungpa

vendredi 3 juin 2011

Você está à altura do seu destino?


Velho e cansado, sofrendo de cólicas e disenteria, Cortez em nada se parecia com o destemido soldado de tempos atrás, protagonista de aventuras inimagináveis no coração da América. Agora, de nada lhe adiantavam as antigas glórias e as honras pelas quais tanto lutara. A força, a energia e a coragem do guerreiro haviam sido minadas pela ação impiedosa do tempo. As mesmas mãos que empunharam tantas espadas, não tinham vitalidade nem mesmo para assinar documentos, precisando de ajuda para segurar a pena. Foi assim, debilitado, que o capitão espanhol passou seus últimos dias. Nas horas de maior agonia pôde contar apenas com os cuidados de Joana de Quintanilha e do amigo e médico Cristóvão Mendes.

O capitão Cortez viria a falecer numa sexta-feira, aos 62 anos, no dia 2 de dezembro de 1547, 26 anos após a conquista da grande Tenochtitlán. Sua partida teve poucas testemunhas: seu filho Martim, um padre, um primo e um amigo. O ritual fúnebre completou-se dois dias depois, quando o corpo finalmente foi enterrado após ser levado em cortejo acompanhado por capelães das paróquias vizinhas.

A morte de Cortez, contudo, marcou alguns começos. Suas proezas e aventuras foram registradas e relatadas como feitos importantíssimos, que se tornaram lendários e passaram a ocupar as páginas da História. Como personagem histórico, Cortez virou figura polêmica: herói ou vilão? Perverso ou piedoso? Político ou sanguinário? Fiel ou maquiavélico? E passou, então, a ser julgado pelo tempo. Sua imagem seria interpretada, construída e reconstruída de diversas maneiras ao longo da história e seus diferentes períodos, de acordo com interesses e questionamentos variados. Assim, uma vida - repleta de viagens, aventuras, guerras e paixões - adquiriu diferentes significados com o passar dos séculos. Povos e épocas distintos constituiriam memórias próprias do capitão espanhol, e o fazem até hoje. Assim, não é arriscado afirmar que sempre existirão diversos "Cortezes", respondendo às angústias e aos problemas dos homens que leem a história sob distintas óticas.

Diante de tal figura, cabe, então, a mesma interrogação proposta por Hamlet: "Você está à altura do seu destino?".

"Hernán Cortez: Civilizador ou Genocida?"
Autor: Marcus Vinícius de Morais
Editora: Editora Contexto