vendredi 22 mai 2009

À SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS



Todo o confuso amontoado do social se move em torno desse referente esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, desse nada: as massas. Bola de cristal das estatísticas, elas são “atravessadas por correntes e fluxos”, à semelhança da matéria e dos elementos naturais. Pelo menos é assim que elas nos são representadas. Elas podem ser “magnetizadas”, o social as rodeia como uma eletricidade estática, mas a maior parte do tempo se comportam precisamente como “massa”, o que quer dizer que elas absorvem toda a eletricidade do social e do político e as neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras do político, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras do sentido em geral. Tudo as atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui sem deixar traços. E na realidade o apelo às massas sempre ficou sem resposta.

Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido. Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro. É nesse sentido que a massa é característica da nossa modernidade, na qualidade de fenômeno altamente implosivo, irredutível a qualquer prática e teoria tradicionais, talvez mesmo irredutível a qualquer prática e a qualquer teoria simplesmente. Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” - ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio. Força de absorção e de neutralização, desde já superior a todas as que se exercem sobre elas. Força de inércia especifica, cuja eficácia é diferente da de todos os esquemas de produção, de irradiação e de expansão sobre os quais funciona nosso imaginário, incluindo a vontade de destruí-los. Figura inaceitável e ininteligível da implosão (trata-se ainda de um processo?), base de todos os nossos sistemas de significações e contra a qual eles se armam com todas as suas resistências, ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescência de todas as significações e com uma dissipação de todos os significantes:

O vácuo social é atravessado por objetos intersticiais e acumulações cristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal é a massa, um conjunto no vácuo de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.

Exatamente o inverso, portanto, de uma acepção “sociológica”. A sociologia só pode descrever a expansão do social e suas peripécias. Ela vive apenas da hipótese positiva e definitiva do social. A assimilação, a implosão do social lhe escapam. A hipótese da morte do social é também a da sua própria morte. O termo massa não é um conceito. Leitmotiv da demagogia política, é uma noção fluida, viscosa, “lumpen-analítica”. Uma boa sociologia procurará abarcá-la em categorias “mais finas”: sócio-profissionais, de classe, de status cultural, etc. Erro: é vagando em torno dessas noções fluidas e acríticas (como outrora a de “mana”) que se pode ir além da sociologia critica inteligente. Além do que, retrospectivamente, se poderá observar que os próprios conceitos de “classe”, de “relação social”, de “poder”, de “status”, todos .estes conceitos muito claros que fazem a glória das ciências legítimas, também nunca foram mais do que noções confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de preservar um determinado código de análise.

Querer especificar o termo massa é justamente um contra-senso - é procurar um sentido no que não o tem. Diz-se: “a massa de trabalhadores”. Mas a massa nunca é a de trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social. As “massas camponesas” de outrora não eram exatamente massas: só se comportam como massa aqueles que estão liberados de suas obrigações simbólicas, “anulados” (presos nas infinitas “redes”) e destinados a serem apenas o inumerável terminal dos mesmos modelos, que não chegam a integrá-los e que finalmente só os apresentam como resíduos estatísticos. A massa é sem atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referência. Aí está sua definição, ou sua indefinição radical. Ela não tem “realidade” sociológica. Ela não tem nada a ver com alguma população real, com algum corpo, com algum agregado social específico.

Qualquer tentativa de qualificá-la é somente um esforço para transferi-Ia para a sociologia e arrancá-la dessa indistinção que não é sequer a da equivalência (soma ilimitada de indivíduos equivalentes: 1 + 1 + 1 + 1 - tal é a definição sociológica), mas a do neutro, isto é, nem um nem outro (neuter). Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa é a causa desse vácuo e da força de desagregação que ela exerce sobre todos os sistemas, que vivem da disjunção e da distinção dos pólos (dois, ou múltiplos, nos sistemas mais complexos). É o que nela produz a impossibilidade de circulação de sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os átomos no vácuo. É também o que produz a impossibilidade, para a massa, de ser alienada, visto que nela nem um nem o outro existem mais.

Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem história. Admirável conjunção dos que nada têm a dizer e das massas que não falam. Nada que contém todos os discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas simulação por precipitação de todos os referenciais perdidos. Caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos que não admitiu, da história impossível, dos sistemas de representação inencontráveis, a massa é o que resta quando se esqueceu tudo do social. Quanto à impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor exemplo é o de Deus. As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a Idéia. Elas jamais foram atingidas pela Idéia de Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angústias do pecado e da salvação pessoal. O que elas conservaram foi o fascínio dos mártires e dos santos, do juízo final, da dança dos mortos, foi o sortilégio, foi o espetáculo e o cerimonial da Igreja, a imanência do ritual - contra a transcendência da Idéia. Foram pagãs e permaneceram pagãs à sua maneira, jamais freqüentadas pela Instância Suprema, mas vivendo das miudezas das imagens, da superstição e do diabo. Práticas degradadas em relação ao compromisso espiritual da fé? Pode ser.

Esta é a sua maneira, através da banalidade dos rituais e dos simulacros profanos, de minar o imperativo categórico da moral e da fé, o imperativo sublime do sentido, que elas repeliram. Não porque não pudessem alcançar as luzes sublimes da religião: elas as ignoraram. Não recusam morrer por uma fé, por uma causa, por um ídolo. O que elas recusam é a transcendência, é a interdição, a diferença, a espera, a ascese, que produzem o sublime triunfo da religião. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã das imagens, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia.

Desvio fantástico do princípio religioso. As massas absorveram a religião na prática sortílega e espetacular que adotaram. Todos os grandes esquemas da razão sofreram o mesmo destino. Eles só descreveram sua trajetória, só seguiram o curso de sua história no diminuto topo da camada social detentora do sentido (e em particular do sentido social), mas no essencial somente penetraram nas massas ao preço de um desvio, de uma distorção radical. Assim foi com a razão histórica, a razão política, a razão cultural e a razão revolucionária - assim foi com a própria razão do social, a mais interessante pois é a que parece inerente às massas, e por tê-las produzido no curso de sua evolução.

As massas são o “espelho do social”? Não, elas não refletem o social, nem se refletem no social - é o espelho do social que nelas se despedaça. A imagem não é exata, pois ainda evoca a idéia de uma substância plena, de uma resistência opaca. Ora, as massas funcionam mais como um gigantesco buraco negro que inflete, submete e distorce inexoravelmente todas as energias e radiações luminosas que se aproximam. Esfera implosiva, em que a curvatura dos espaços se acelera, em que todas as dimensões se encurvam sobre si mesmas e involuem até se anularem, deixando em seu lugar e espaço somente uma esfera de absorção potencial.

Jean Baudrillard – À sombra das maiorias silenciosas

mercredi 6 mai 2009

Morte e a Sensação de Experiência



AS EXPLORAÇÕES DAS SITUAÇÕES DA VIDA pelo jovem príncipe estão ligadas a uma sensação de eternidade. Explorar as situações da vida é fazer amigos com o mundo, e fazer amigos com o mundo consiste em considerar o mundo confiável. [Se torna confiável porque] há algo de eterno a seu respeito. Quando falamos de eternidade não estamos falando da eternidade de uma entidade particular que continua para sempre, como nas crenças filosóficas dos eternalistas. Neste caso a descontinuidade também é uma expressão de eternidade. Mas antes de discutir a eternidade, poderia ser bom discutir a morte.

A morte é a experiência desolada na qual nossos padrões habituais não podem continuar como gostaríamos que continuassem. Nossos padrões habituais param de funcionar. Uma nova força, uma nova energia, nos toma, que é a natureza da morte, ou da descontinuidade. É impossível focar esta continuidade de qualquer ângulo. Esta descontinuidade é algo com que você não pode se comunicar, porque você não consegue agradar esta força em particular. Você não pode ser amigo dela, você não pode ludibria-la, não pode convence-la a qualquer coisa. É extremamente poderosa e sem compromissos.

O fato dela não se comprometer também impede as expectativas para o futuro. Temos nossos planos projetos de todos os tipos em que gostaríamos de trabalhar. Mesmo se estivéssemos entediados com a vida, nós ainda gostaríamos de sermos capazes de recuperar aquele tédio. Há uma esperança constante de que algo melhor possa surgir das experiências dolorosas da vida, ou que possamos descobrir alguma maneira nova de expandir as situações prazerosas. Mas a sensação de morte é muito poderosa, muito orgânica, muito real.

Quando você está prestes a morrer, pode ser que seus médicos, seus parentes, ou seus amigos mais chegados não lhe digam que você vai morrer. Eles podem considerar difícil fazer este comunicado a você. Mas eles comunicam uma simpatia silenciosa, e há algo por trás dela. No mundo convencional, as pessoas não querem se relacionar com um amigo que está morrendo. Eles não querem se relacionar com a experiência de morte de seu amigo como algo pessoal. É um embaraço mútuo, uma tragédia mútua sobre a qual não se quer falar. Se estamos em ambientes menos convencionais, podemos nos aproximar de uma pessoa moribunda e dizer, você está morrendo, mas ao mesmo tempo tentar dizer a ele: enfim, isso não é algo ruim, o que está acontecendo com você. Você vai ficar bem. Pense naquelas promessas sobre eternidade que você ouviu. Pensa em Deus, pense em salvação. Nós ainda não queremos entrar no cerne do assunto.

Estamos tentando encarar a situação, mas ela é embaraçosa. Apesar de sermos corajosos o suficiente para dizer que alguém vai morrer, nós dizemos: mas ainda assim você vai ficar bem. Todos aqui acham que isso é bom, e nós o amamos. Leve algo desse amor que sentimos por você e transforme-o em algo quando você se for desse mundo, quando você morrer. Essa é a atitude [de esquiva] que temos perante a morte. A experiência real da morte, como já explicamos, é uma sensação de cessar de existir. A rotina normal de sua vida cotidiana deixa de funcionar e você se transforma em outra coisa. O impacto básico da experiência é o mesmo, quer você creia no renascimento ou não: é a descontinuidade do que você estava fazendo. Você está deixando seus sócios para trás. Você não vai conseguir terminar de ler aquele livro que você ainda não acabou.

Você não vai ser capaz de terminar o curso que você estava freqüentando. Talvez as pessoas que estão envolvidas com a doutrina do renascimento possam tentar lhe dizer, Quando você voltar, você terminará este livro. Você estará de volta conosco. Talvez você seja um de nossos filhos. Pense nessas possibilidades. Eles tendem a dizer estas coisas e fazer todo tipo de promessas. Eles fazem promessas sobre estar com Deus ou voltar ao mundo e continuar com as coisas que você deixou para trás.

Nesse tipo de conversa, há algo que não é realmente aberto. Há algum tipo de medo, medo mútuo, mesmo em meio a crenças de eternidade ou reencarnação. Há medo ou embaraço perante relacionar-se com a morte. Há sempre uma sensação de algo indesejável, mesmo se você está lendo para seu amigo um capítulo do Livro Tibetano dos Mortos, ou algo assim. Você pode dizer a seu amigo, Apesar de algo terrível estar acontecendo a você, há uma coisa maior. Agora você realmente vai ter uma chance de passar por aquelas experiências descritas no Livro Tibetano dos Mortos. E nós o ajudaremos a faze-lo! Mas não interessa o que tentemos, há essa sensação de algo que não pode ser feito completamente certo, não interessa que tipo de imagem positiva queiramos passar.

Parece que, supreendentemente, para muitas pessoas, particularmente no ocidente, ler O Livro Tibetano dos Mortos pela primeira vez é muito emocionante. Pensando a respeito, cheguei à conclusão que a excitação vem do fato de que promessas tremendas estão sendo feitas. A fascinação com as promessas feitas no Livro Tibetano dos Mortos quase ofusca a própria morte. Temos buscado por um longo tempo uma forma de encobrir nossas irritações, incluindo a própria morte. As pessoas ricas gastam muito dinheiro em caixões, em boas roupas para vestir. Eles pagam por caríssimos sistemas funerais. Elas tentarão de qualquer jeito impedir o embaraço ligado à morte. É por isto que O Livro Tibetano dos Mortos é tão popular e é considerado tão fantástico.

Da mesma forma as pessoas se sentem muito excitadas e festivas sobre a idéia da reencarnação. Algumas décadas atrás quando a idéia da reencarnação se tornou bem divulgada pela primeira vez, todo mundo ficou excitado a respeito. Essa é outra forma de ofuscar a morte. Você vai continuar; você tem seus débitos cármicos para resgatar e seus amigos para reencontrar. Talvez você retorne como meu filho. Ninguém parou para considerar que eles poderiam voltar como um mosquito ou como um cachorro ou gato de madame. Esse tipo de enfoque com relação à morte que temos discutido é muito estranho, extremamente estranho.

Quando discutimos a descoberta da eternidade por Vajradhara, que é como o próximo aspecto de Padmasambhava é chamado, não estamos olhando para ele como uma vitória sobre a morte ou como um substituto para as irritações da morte ou qualquer coisa desse tipo. A eternidade nesse sentido está ligada com uma visão verdadeira dos fatos da vida. A dor existe e o prazer existe. Existe um aspecto negativo do mundo. Ainda assim, você pode se relacionar com ele. Fundamentalmente, desenvolver esse tipo de sentido de eternidade é fazer amigos. Poderíamos considerar uma certa pessoa como um bom amigo à despeito de suas qualidades ameaçadoras. De fato, é por isso que nos tornamos amigos.

Relacionar-se com a eternidade nesse sentido é se tornar um rei da vida, um senhor da vida. E se o senhor da vida é realmente um senhor, seu império se estende até a morte também. Assim o senhor da vida é o senhor da vida e da morte. E este senhor da vida é conhecido como Vajradhara. O jovem príncipe que recém havia sido expulso de seu reino repentinamente decide se adaptar ao ambiente selvagem do cemitério a céu aberto e ao princípio fundamental da eternidade, que é geralmente conhecido como experiência mahamudra. A experiência mahamudra aqui é a experiência que se relaciona com a qualidade vívida dos fenômenos. Isto é, o cenário do cemitério a céu aberto é real. Há esqueletos, pedaços de corpos, animais selvagens, corvos, lobos, assim por diante.

No cemitério a céu aberto, o jovem príncipe descobre um novo enfoque com relação a vida, ou ainda, um novo enfoque de vida o descobre. Poderíamos dizer que nesse estágio Padmasambhava se torna um cidadão respeitável, porque o sentido de eternidade revela indestrutibilidade, indestrutibilidade no sentido de que nada possa ser uma ameaça e nada possa confortar. Este é o tipo de eternidade a que estamos nos referindo aqui. A morte não é mais considerada uma ameaça. A experiência de morte de Padmasambhava é uma experiência de um dos aspectos da vida. Ele não está preocupado em perpetuar sua personalidade e existência. Poderíamos dizer que este enfoque é mais do que o de um iogue ou o de um siddha. Esse enfoque é mais o de um Buda, já que estas experiências não são consideradas conquistas de qualquer tipo elas não são descobertas, vitórias, ou formas de vingança. Estas experiências apenas acontecem; e porque elas acontecem, Padmasambhava se afina a elas. Assim Padmasambhava como Vajradhara se torna o senhor da vida e da morte, o detentor do vajra, o detentor da energia indestrutível um Buda sambhoghakaya.

A próxima jornada que Padmasambhava faz está ligada com desejar explorar todos os tipos de situação de ensinamentos e querer se relacionar com os maiores professores do mundo naquela época. Ele visita um dos professores mais proeminentes da tradição maha ati, Shri Simha, que supostamente veio da Tailândia, o Sião, e estava vivendo em uma caverna em outro cemitério a céu aberto. Vajradhara, o aspecto sambhoghakaya de Padmasambhava, foi até esse mestre e perguntou como destruir a sensação de experiência. Shri Simha reduziu Padmasambhava a uma sílaba HUM, que é penetração.

Você não tenta dissolver a experiência ou considera-la um engano. Você penetra a experiência. A experiência é como um recipiente com muitos furos, o que quer dizer que não pode prover um bom abrigo, um bom conforto. Penetrar ou furar é como furar uma rede confortável armada sob uma árvore, [uma vez que você o perfura] quando você se aproxima dela e tenta sentar nela, descobre que caiu no chão. Esta é a penetração da sílaba semente HUM. Reduzindo Padmasambhava a um HUM, Shri Simha o engole pela boca e o defeca pelo anus. Isto é leva-lo de volta à experiência nirmanakaya de ser capaz de penetrar o mundo fenomênico total e completamente, de ser capaz de transmitir uma mensagem ao
mundo fenomênico.

Tendo destruído seu próprio sentido de sobrevivência e atingido uma sensação de eternidade, Padmasambhava agora desenvolve um sentido de penetração. (Claro, ele não está realmente desenvolvendo coisa alguma, ele está apenas passando por estas fases. Estamos contando a história de Padmasambhava de acordo como nos o temos construído, ao invés de tentar expressar que ele fez todas estas coisas.) Isto é quando Padmasambhava se tornou conhecido como o grande iogue que podia controlar o tempo, que podia controlar o dia e a noite e as quatro estações. Este aspecto iogue de Padmasambhava é chamado Nyima Öser. Nyima Öser penetrava todas os conceitos de tempo, dia e noite, as quatro estações. Em sua iconografia, ele é visto parando o movimento do sol, usando seus raios como se fossem correntes.

A idéia aqui não é que a conquista de uma experiência sutil possa leva-lo a tão completa absorção que você cessa de experimentar as distinções entre dia e noite e as quatro estações. Pelo contrário, as atitudes conceituais com relação a dia e noite e às quatro estações ou com relação à dor e prazer ou todo o resto são completamente penetradas. Geralmente o dia e a noite e as quatro estações nos dão conforto ao nos dar a sensação de que estamos nos relacionando com a realidade, com os elementos: Agora estamos nos relacionando com o verão, agora estamos nos relacionando com o outono, agora estamos nos relacionando com o inverno, e agora estamos nos relacionando com a primavera.

Como é bom estar vivo! Como é bom estar na terra, o melhor lugar para o homem, sua casa! Está ficando tarde; é hora do jantar. Deveríamos começar o dia com um café da manhã reforçado. Assim por diante. Nosso estilo de vida é governado por estes conceitos. Há muitas coisas para fazer enquanto o tempo passa, e relacionar-se com elas é como balançar numa rede, uma cama confortável em pleno ar. Mas Nyima Öser perfurou esta rede. Agora você não pode apenas se divertir balançando e tirando uma boa soneca em pleno ar. Esta é a qualidade de penetração aqui.

A: Você está tirando uma soneca confortável nessa rede. Então você penetra a aparência confortável dessa rede. Então onde isso te coloca de pé?

TR: Você se descobre no chão.

A: Mas de alguma forma alerta?

TR: Sim. Uma das qualidades parece ser uma sensação de despertar ao invés de absorver-se.

A: Se Padmasambhava é o grande iogue que controla o tempo, isso significa que o tempo não o controla da forma que nos controla?

TR: Não é realmente uma questão de controlar o tempo; ou não ser controlado por ele. É descobrir a atemporalidade. Se você traduzir isto em algum tipo de linguagem de colono, então você diria controlar o tempo.

A: Você repetidas vezes enfatizou que Padmasambhava não aprende nada e de certa forma sabe tudo. Não entendo porque não podemos olhar para ele como um ser humano comum, como qualquer um de nós, que aprendeu várias coisas em diversos níveis.

TR: Poderíamos igualmente nos relacionarmos com nossos estágios neste estilo. Nosso processo de desenvolvimento espiritual, ou como você quiser chama-lo, é um processo de desaprendizado e não um processo de acumular novas experiências. O estilo de Padmasambhava é um desmascarar, desaprender muitas camadas de cobertura fenomênica são gradualmente removidas.

A: O processo de desmascarar, ou desaprender, parecer ser como uma série de mortes. Porque isto tem de ser tão doloroso? Porque não pode ser como um tipo de liberação e gerar uma espécie de sensação de alegria?

TR: Bem, é alegre, e talvez estejamos reclamando demais. Estamos muito mais conscientes da intensidade da escuridão do que do brilho da luz.

A: Parece que a forma correta de lidar com a morte é sem nenhuma estratégia. Você tem que abandonar seu medo antes de estar sem uma estratégia? Ou você pode apenas lidar com seu medo?

TR: O medo é algo muito interessante, na verdade. Possui discernimento além da qualidade cega de pânico. Assim parece que se você desistir da esperança de atingir qualquer coisa, então afinar-se ao medo é afinar-se ao discernimento. E os meios hábeis surgem espontaneamente do próprio medo, porque o medo parece ser extremamente cheio de recursos. É o oposto da ausência de esperança, na verdade. Mas o medo também tem o elemento do pânico e uma atitude surda e muda você sabe, fazer o melhor que você pode. Mas o medo sem
esperança parece ser algo realmente cheio de discernimento.

A: O medo é cheio de discernimento no que nos aponta o que realmente tememos em primeiro lugar?

TR: Não só isso. Tem seu próprio aspecto intuitivo acontecendo além de apenas conclusões lógicas. Possui uma vastidão de recursos espontaneamente presentes.

A: Poderia falar mais sobre isso?

TR: Quando você se conecta com seu medo, você percebe que já saltou, você já está no meio da queda. Você percebe isso, e então você se torna cheio de recursos.

A: Não é isso que todos estamos fazendo sendo cheios de recursos que vem do nada?

TR: Nós não percebemos que já estamos no meio da queda.

A: Rinpoche, você disse que o medo sem esperança seria inteligente. O mesmo poderia ser dito das outras emoções intensas?

TR: O resto das emoções são principalmente constituídas de esperança e medo. Esperança e medo representam o tipo de qualidade de empurrar e puxar da dualidade, e todas as emoções consistem disso. Elas são diferentes aspectos dessa mesma coisa; elas parecem ser feitas de esperança e medo de alguma coisa puxar e magnetizar ou esquivar-se.

A: Ter medo é também desejar a mesma coisa que você teme?

TR: Sim, é assim que é. Mas quando você percebe que não há nada para se desejar (você sabe, o desejo é o aspecto de esperança do medo), quando você percebe isto, então você e seu medo são deixados nus e solitários.

A: Assim você apenas se conecta com o medo sem esperança. Mas como você faz isso?

TR: É relacionar-se sem uma auto-alimentação. Então a situação automaticamente se intensifica ou se torna clara.

A: Você poderia aplicar o mesmo enfoque com relação à raiva? Se estou bravo, ao invés de ou expressar ou suprimir, eu apenas me relaciono com isto? Paro a raiva e apenas me relaciono com o processo de pensamento?

TR: Você não para a raiva, você é a raiva. A raiva apenas fica ali como ela é. Isto é relacionar-se com a raiva. Então a raiva se torna vívida e sem direção, e se dissipa como energia. A idéia de lidarmos com ela não tem nada a ver com expressar-se para a outra pessoa. A expressão tibetana para isto é rang sar shak, que quer dizer deixe-a em seu próprio lugar. Deixe a raiva ficar em seu próprio canto.

A: Ainda não entendo o que deveríamos tentar comunicar para uma pessoa que está morrendo.

TR: Veja, a morte é uma experiência real. Geralmente, não nos ligamos com uma sensação de realidade. Se temos um acidente ou qualquer coisa que ocorre em nossas vidas nós não a consideramos como uma experiência real, mesmo que ela possa nos machucar. Nos é real na medida que diz respeito à dor e aos danos físicos, mas ainda não nos é real porque pensamos imediatamente em termos de como poderia ter sido diferente. Há sempre uma idéia de um primeiro-socorro ou de algum aspecto redentor da situação. Se você está falando com um amigo ou parente que está morrendo, você deveria transmitir a idéia de que a morte é uma experiência real, ao invés de que seja apenas uma piada e que a pessoa vá ficar melhor. Geralmente as pessoas dizem para uma pessoa que está morrendo coisas como: A vida é mesmo uma grande piada. Os grandes santos dizem que ela não é real. A vida é irreal. O que é a morte, enfim? Quando tentamos tomar esse enfoque, nós mesmos estamos nervosos; e esse nervosismo é o fim da comunicação com a pessoa que está morrendo. Deveríamos tentar ajuda-los a entender que a morte é real.

Tradução por Eduardo Padma Dorje (pdorje@zaz.com.br) e Ana Macedo, em setembro de 2001. Instituto Caminho do Meio em Porto Alegre/RS (http://bodisatva.org). Por favor não distribua este texto ou partes dele indiscriminadamente.