samedi 6 février 2010

A Ordem do Discurso




O que constitui as doutrinas (religiosas, políticas, filosóficas) é, à primeira vista, o inverso de uma "sociedade de discurso" : nesta, o número dos indivíduos falantes, mesmo quando não estava fixado, tendia a ser limitado ; e era entre eles que o discurso podia circular e ser transmitido. A doutrina, pelo contrário, tende a difundir-se ; e é pelo pôr em comum de um único conjunto de discursos, que os indivíduos, tão numerosos quanto o quisermos imaginar, definem a sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de uma certa regra — mais ou menos flexível — de conformidade com os discursos validados ; se as doutrinas fossem apenas isto, elas não seriam diferentes das disciplinas científicas, e o controlo discursivo diria respeito unicamente à forma ou ao conteúdo do enunciado, não ao sujeito falante.

Ora, a pertença doutrinal põe em causa ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito falante, e um por intermédio do outro. Põe em causa o sujeito falante por intermédio e a partir do enunciado, como o provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição que intervêm quando um sujeito falante formulou um ou vários enunciados inassimiláveis ; a heresia e a ortodoxia não provêm de uma fanática exageração dos mecanismos doutrinais; heresia e ortodoxia pertencem-lhes fundamentalmente. Mas, inversamente, a doutrina põe também em causa os enunciados a partir dos sujeitos falantes, na medida em que ele vale sempre como sinal, manifestação e instrumento de uma pertença prévia — pertença de classe, de estatuto social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de aceitação.

A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e interdita-lhes, por conseguinte, todos os outros; mas, em reciprocidade, serve-se de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si, e desse modo os diferenciar de todos os outros. Ela efectua uma dupla sujeição : dos sujeitos falantes ao discurso, e dos discursos ao grupo, pelo menos virtual, dos indivíduos falantes.
Finalmente, numa escala muito maior, podem reconhecer-se grandes clivagens naquilo a que se poderia chamar a apropriação social dos discursos. A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso ; sabemos no entanto que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo.

Michel Foucault