samedi 31 juillet 2010

Conceito de 'ALMA' no budismo tibetano



Qual o conceito budista de alma?

Creio que os budistas ocidentais acreditem que alma seja uma boa tradução para o termo hindu atman, sendo que o Buda pregou o "anatman", isto é, que não há um atman. O atman é a faísca divina e a individualidade eterna de cada ser. Creio que há noções de psiquê/anima/alma a que o budismo não se contraponha. Nomeadamente qualquer uma que não preveja eternidade ou separatividade. A própria noção de atman no hinduísmo evoluiu no diálogo com o budismo, ao ponto de ficar muito difícil resolver a questão. Da mesma forma, noções como "natureza de buda" foram acusadas de desafiar o princípio de anatman deixado pelo Buda. De forma que os budistas que propõe tais noções tomam grande cuidado para que isso não se confunda com um atman.

A alma humana após a morte física, para o budismo, perde a sua individualidade?

Infelizmente não. A ignorância continua sustentando uma noção de individualidade mesmo após a morte. Agora, se é a mesma individualidade ou se é outra, fica difícil dizer, já que a noção de "individualidade" é uma falsidade perpetuada pela ignorância mesmo durante essa vida. De outra forma sim, como seguimos ignorantes após a morte, ainda sustentando individualidades, isso mostra que há algum tipo de continuidade que sustenta essa ignorância. Porém, ao que tudo indica, já que é a ignorância que sustenta noções tais como tempo, causalidade e separação - nas quais se baseia a identidade/individualidade - essa continuidade não é o mesmo que uma alma ou a noção de atman (primitiva ao menos).

A concepção budista de alma difere totalmente da concepção espírita Kardecista?

Creio que bastante. Se totalmente fica difícil avaliar, visto que o budismo toma sua noção de alma de um diálogo com outra religião, o hinduísmo -- ele mesmo não muito unificado e coerente ao longo do tempo com relação a essa noção. Já a noção de alma no cristianismo em geral vem da tradição grega e judaica - e sabe-se lá mais de onde. Ela chega com uma cara específica no séc. XIX, quando o espiritismo surge. Mas creio que a perspectiva espírita é bem diversa da budista no que diz respeito a dois aspectos: evolução e sustentação da individualidade. No budismo não há evolução propriamente, apenas uma noção que talvez possa ser chamada de transcendência. Em outras palavras, tudo que é conquistado ou conquistável é perdível e perdido. Então as coisas que podem ser conquistadas ou nas quais evoluímos são secundárias ou não propriamente espirituais -- embora tenham valor relativo. Isso acaba na noção de que todos já foram minhas mães, inclusive os insetos, e que posso perfeitamente renascer como um inseto ou algo pior do que isso. Mesmo um bodisatva de "10° nível" (o mais elevado) pode perder tudo e começar "do zero". Aliás, mesmo o estado meditativo de tal bodisatva deve ser objeto de nossa compaixão, porque é ainda um estado de ignorância. E, nesse sentido, ele tem tanta chance quanto qualquer um de nós de tornar-se um Buda (estado transcendente).

Depois a sustentação da individualidade também está um pouco ligada a essa noção de aprendizado ou evolução. Para o budismo, principalmente o hinayana, o fato de que renascemos ocorre porque queremos sustentar uma identidade, então, por ignorância - não é uma circunstância feliz. No mahayana sabemos que renascer é sofrimento, mas aceitamos esse sofrimento para trazer benefício aos seres. Isso ocorre porque a noção de identidade é abandonada em meio a manifestação. Parece que o nirvana do hinayana é meio que uma fuga: não nascer mais para não sofrer. Mas tem alguém que sofre e não quer sofrer. No mahayana, entendendo que nunca houve uma identidade, mesmo enquanto há um corpo, e que ela é apenas uma ilusão causada por nossa ignorância, não há problema nenhum com as manifestações. Ou seja, tanto no mahayana quanto no hinayana existe a noção de que a individualidade é um problema. No hinayana o renascimento é um problema, no mahayana é só um meio de ajudar os seres - e não de "continuar" como parece ser a idéia no cardecismo. No budismo é o carma que produz a identidade, não é a identidade que "carrega" o carma. Essa é uma diferença muito importante. Algumas vezes as pessoas perguntam "o que afinal renasce no budismo" - é o carma. O carma dá origem a todas essas identidades, uma após a outra. E a ignorância que produz o carma produz também o nexo causal que liga uma a outra, e nos faz acreditar que é "uma identidade". De outra forma também se pode dizer que uma identidade pode perpassar várias vidas (e assim dar certa credibilidade a certos fenômenos que os espíritas observam) -- mas não um número infinito ou uma eternidade de vidas. O Buda lembrava 500 vidas passadas, e por isso ele sabia que quando tinha uma dor-de-cabeça isso se devia a ele ter ficado feliz com os movimentos de um peixe agonizando, 243 vidas antes. Porém, quando o Buda atingiu a onisciência, ele sabia das vidas passadas e futuras de todos os seres. Assim, ele não estava vinculado a noção de uma identidade, e era apenas "um sonho ensinando ensinamentos de sonho para seres de sonho" -- nas palavras dele.

Existe algum ponto de contato entre elas, já que ambas as religiões são reencarnacionistas?

Creio que todas as tradições religiosas legítimas tem bons valores, tais como a bondade, a caridade, a compaixão. Existem grandes diferenças entre o budismo e o cardecismo, e mesmo o cristianismo como um todo. Mas as diferenças devem ser celebradas. Um ponto que pode aproximar cardecistas e budistas é que em certo nível de ensinamento budista se enfatiza o que se enfatizava no hinduísmo por muito tempo, e que o cardecismo também enfatiza. Isto é, que ações negativas produzem resultados negativos e ações positivas produzem resultados positivos. De certa forma, essa é também uma noção cristã. Porém, no budismo, como disse antes, não há a noção de "ganhos imperdíveis" - e um instante de raiva destrói o mérito acumulado em vidas incontáveis. Então é considerado muito mais comum renascermos em condições piores, como animais ou seres famintos, ou no inferno, do que como seres humanos. Depois, como não há Deus no budismo, nem "senhores do carma", o processo do carma é entendido de uma forma diferenciada -- não como um plano divino, ou ao menos não necessariamente como um plano divino (e uma consequente teleologia). Aliás, acho que o budismo não tem uma teleologia (o Buda aconselhava a não pensar sobre isso, por exemplo "o que vai acontecer quando todos se iluminarem", "o universo é finito ou infinito" etc).

Enfim, há uma crescente tendência em traduções budistas de não usarem o termo "reencarnação", mas sim "renascimento", mesmo porque a "carne" é condição de apenas alguns renascimentos (e aliás, o melhor entre eles, o humano - o que também é estranho no espiritismo, visto que com certeza o renascimento humano não é considerado o melhor).

Palestra proferida em São Paulo, no teatro Ruth Escobar, por S.S. o Dalai Lama, em 1992

mardi 6 juillet 2010

Treinamento para a morte


Na próxima vez que enfrentar alguma dificuldade, imagine que está mergulhando nas águas da morte. Qual será a sua reação frente a essa situação? Da perspectiva do momento da morte você se perderá em confusão e reação de fuga? Tentará evitar esse momento, tentará esconder-se? Se mostrará alerta e aceitará a situação?

Muitas tradições espirituais enfatizam o exercício da prática da imaginação da morte para colocar os eventos da vida numa outra perspectiva; todos nós nos deixamos levar por nossos pequenos dramas e historias. A lembrança da morte pode nos afastar desses jogos da mente e ampliar a nossa experiência. Ao mantermos essa conscientização podemos viver com maior espaço e facilidade.

Pensar na prática meditativa como uma experiência para a morte me inspira muito, sobretudo em momentos de dores emocionais e físicas. A nossa morte provavelmente será difícil. E ao meditarmos estamos, numa escala infinitamente menor, também numa situação difícil. Vemos quem somos e como podemos nos abrir. Esse é o nosso treinamento.

Depois de alguns minutos sentados nossa mente e nosso corpo começam a assinalar algum tipo de desconforto: formigamento nas pernas - por exemplo. Vemos então que é realmente necessário uma certa persistência para aceitarmos esses estados. Mas se formos teimosos conseguiremos ir adiante.

Há boas chances de que enfrentaremos ainda mais desconfortos quando morreremos. Provavelmente enfrentaremos dores no corpo e emoções difíceis de serem metrizáveis ao começarmos a nossa jornada rumo a esse mistério que é a morte. Como é que conseguiremos nos relacionar com tudo isso? Estaremos abertos, serenos, com medo, lutando para fugir do processo, haverá ansiedade ou mesmo terror?

Cada sessão de meditação - sentada ou caminhando - cada momento que praticamos é uma oportunidade para treinar a mente. Será que conseguimos nos abrir para tudo isso, aceitar tudo isso? E quanto mais nos aprofundarmos na prática, quanto mais nos aproximarmos dos limites, mais esses limites se expandirão. A morte pode ser um desses limites. Será que podemos nos treinar tão bem a ponto de atravessarmos esses limites com confiança quando chegar o momento?

Joseph Goldstein - Insight Meditation, The Practice of Freedom