dimanche 25 novembre 2012

A revolta dionisíaca



Em seu último livro, La Puissance d’exister , o senhor evoca diretamente a sua infância através do prefácio intitulado Autoportrait à l’enfant . Esta abordagem serve para mostrar que o homem não esta separado do filosofo, ou é uma forma de estabelecer ainda mais um elo com seus leitores?

Michel Onfray - Desde o meu primeiro livro de 1989, Le Ventre des philosophes , proponho as raízes autobiográficas das ideias que são expostas no texto. Nos meus livros mais importantes, importantes pelo menos para mim, escrevo sempre sobre um momento existencial por trás da teoria proposta: por exemplo, em função da minha breve experiência enquanto trabalhador de uma usina, escrevi Politique du rebelle, onde eu desenvolvo uma filosofia anarquista para os dias de hoje; Féeries anatomiques, foi escrito a partir do câncer desenvolvido por minha mulher e que gerou esse livro sobre bioética. Esta é uma forma de mostrar que a filosofia não cai do «céu das idéias», como afirmam os idealistas e espiritualistas, dominantes no campo da filosofia, mas que se eleva da terra, incluindo o corpo e sua interação com a história.

O senhor afirma que não ha nenhum ressentimento em sua critica a religião. Mas o seu estilo e as suas palavras não são elas mais ponderadas e brandas no seu último livro, em comparação com a sua crítica radical e feroz exposta no Traité d’athéologie ?

O Traité d’athéologie é vingativo ou negativo para aqueles que não aceitam crítica as religiões. Para evitar de ter que se confrontar aos meus argumentos ou por não saber contradizer os fatos que apresento, por não saber argumentar contra as minhas propostas, por não ter como afirmar que eu estou errado quando exponho a tese da falta de provas do Jesus histórico, ou sobre a violência que foi a instalação do cristianismo como a religião de estado, da incompatibilidade radical entre o ensino do Alcorão e as bases da República, da invenção do genocídio exposto na Torá, enfim, para evitar o debate, aqueles que me criticam tentam atacar a minha pessoa; não podendo atacar a veracidade de meus argumentos, me classificando como rancoroso, negativo, etc... curiosamente o meu livro Féeries anatomiques , igualmente radical e feroz, não causou esse tipo de reação da parte de meus críticos... Na verdade, basicamente não se falou desse livro. Aparentemente,  nos dias de hoje, falar sobre religião da mais Ibope do que discutir bioética.

Como podemos definir corpo e indivíduo?

O corpo é o que permanece quando todas as ideologias afundam: ideologia cristã, estruturalista, marxista... O corpo é irredutível; é aquilo que ha quando toda fantasia social, político e cultural desaparece. O indivíduo é, no sentido etimológico, aquilo que não se divide, quando tudo o mais esta fragmentado. E apartir dessa base que temos de construir uma ética, uma estética, uma bioética, uma visao política, etc.

Se a filosofia se resume a "confissão de um corpo", ela continua a ter a possibilidade de um discurso universal?

O universal não existe, há apenas o particular. E possivel imaginar que a Critique de la raison pure, que tenta investigar a razão humana a margem da história, consegue dar conta do funcionamento da magia por um feiticeiro da Nova Guiné? A Déclaration des droits de l’homme* deve ser considerada importante a partir do ponto de vista de um membro da tribo dos índios Guayaki? A arrogância da filosofia ocidental anda de mãos dadas com o ensino de uma « religião universal », mas isso é uma fantasia ... Montaigne, em seus Essais** está constantemente no particular, e alcança, o que parece ser, o mais universal possível; porque dá os detalhes de uma odisséia da consciência que pode servir para a própria edificação dessa mesma consciência - para aqueles que se interessam em fazê-lo.

Da mesma forma, o senhor defende um relativismo estético, epistemológico. Negando então a figura do intelectual enquanto portador e gerador de valores universais, como a justiça, a razão ou a verdade. Qual é então o seu papel enquanto filosofo?

Não existe pensamento intelectual desvinculado de seu campo histórico – ou seja, de sua época. Bourdieu nunca acreditou por um segundo que os resultados de La Distinction (La Distinction. Critique sociale du jugement - é um livro publicado em 1979 por Pierre Bourdieu que se desenvolve a partir de uma teoria sociológica dos gostos e dos estilos de vida.) possa se aplicar a uma sociedade se não aquela de seu tempo... O intelectual é apenas uma engrenagem de uma máquina local, mesmo que esssa engrenagem seja um suposto saber do homem branco ocidental judaico-cristão...

Esse relativismo, que se aplicaria tanto para o belo quanto para o que é verdadeiro, não desenvolveria, respectivamente, o niilismo na arte e na política?

Seria o oposto! A promoção de um valor universal que não se sustenta é que leva a contradições que geram o niilismo; causando assim a ausência de valores. Gostaria de frizar que ao afirmar essa relativação dos valores não estou querendo dizer que todos os valores são iguais e que, portanto, não há verdadeiramente nada que seja valido. Esse relativismo liga-se aos valores dinâmicos, plásticos, móveis, vivos: não aos valores fechados, esculpidos em mármore, definitivos. Caso contrário, por que eu teria escrito mais de 30 livros em que desenvolvo posições hedonistas, utilitaristas, saberes libertários e pragmáticos, se não para servirem de bases a novos valores e virtudes?

Sem o livre-arbítrio, não haveria responsabilidade ética e cívica ; pelo fato de que não seriamos realmente livre de nossas escolhas. Como conciliar "imanência e respeito pelos outros" e "imanência e cidadania"?

Pelas simples normas da imanência: o contrato, as regras do jogo, o uso da razão, que uma comunidade tanto precisa; e não por uma «transcendência republicana», um contrato social como uma religião, a comunidade como um corpo místico. Somente através da razão e da inteligência humana é que podemos criar verdadeiros laços sociais; e não buscando em ficções metafísicas, uma espécie de filosofia - pelo menos no ocidente - onde a partir da reformulação da linguagem do idealismo alemão, voltamos aos preceitos da religião judaico-cristã.

A sociedade moderna (publicidade, televisão, marketing, etc.) funciona a partir de uma premissa que define o indivíduo como um sistema nervoso, uma máquina redutível a certas estruturas neuronais e manipulada a partir de certos códigos ou estimulantes precisos. Isso seria o inverso da filosofia da imanência?

Nao o inverso mas a solução, o problema fundamental: uma Critique de la raison pure*** não poderia ser escrita hoje em dia sem levar em consideração as descobertas da neurociência, da etologia, das ciências cognitivas. A metafísica ja teve seus dias, ela tem suas limitações; é necessário repensar a metafisica a partir da fisica e parar de pensar o agora com instrumentos desatualizados que remontam a Platão...

Como evitar as armadilhas do hedonismo e do consumismo?

Hedonismo não existe como tal - devemos lhe qualificar para justificar que a sua existência tenha um sentido próprio; há alguns hédonistas que são meus inimigos, no caso o hedonismo consumista. Os hedonistas, para resumir, dividem-se em dois tipos: o hedonismo do ser, e o hedonismo do ter. O primeiro é o remédio do segundo. O "hedonismo do ter": o prazer que ha em consumir, comprar, possuir, se inscrever em uma lógica de acumulação de objetos, "coisas" para dizer no sentido de um Georges Perec; e ha o "hedonismo de ser", o prazer de filosofar, o prazer da construção pessoal e intelectual, o prazer existencial de se criar uma vida filosófica total e completamente independente do ter: estar de bem com a vida independente das condições externas da mesma. Não ser um escravo da noção de ter, não ser escravo da noção de propriedade, dos objetos, do dinheiro, do poder, da honra e status social, que funcionam como símbolos desse ter. Os inimigos do hedonismo, e existem muitos, dissimulam-se em meio ao real significado do mesmo, como uma nuvem que esconde o sol, achando que assim podem impedir o seu brilho. Epicuro, o filósofo tendo como figura o porco, é uma caricatura tão antigo quanto o mundo…

* Inspirada nos pensamentos dos iluministas, bem como na Revolução Americana (1776), a Assembléia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou em 26 de agosto de 1789 e votou definitivamente a 2 de outubro a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizado em dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários e liberais da primeira fase da Revolução Francesa (1789-1799)

** Os Essais são um autorretrato. O autorretrato de um homem, mais do que o autorretrato do filósofo. Montaigne apresenta-se-nos em toda a sua complexidade e variedade humanas. Procura também encontrar em si o que é singular. Mas ao fazer esse estudo de auto-observação acabou por observar também o Homem no seu todo. Por isso, não nos é de espantar que neles ocorram reflexões tanto sobre os temas mais clássicos e elevados ao lado de pensamentos sobre aflatulência. Montaigne é assim um livre pensador, é um pensador sobre o Humano, sobre as suas diversidades e características. E é um pensador que se dedica aos temas que mais lhe apetecem, vai pensando ao sabor dos seus interesses e caprichos.

*** A Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft), publicada inicialmente em 1781 com uma segunda edição em 1787; é considerada a obra mais influente e mais lida do filósofo alemão Immanuel Kant e uma das mais influentes e importantes em toda a história da filosofia ocidental. Ela é geralmente referida como "primeira crítica" de Kant, uma vez que essa obra precede a "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento".

Tradução: Ricardo Castro