dimanche 14 juin 2009

O Mito da Caverna



SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.

GLAUCO - Imagino tudo isso.

SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.

GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!

SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?

GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.

SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?

GLAUCO - Não.

SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?

GLAUCO - Sem dúvida.

SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?

GLAUCO - Claro que sim.

SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.

GLAUCO - Necessariamente.

SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?

GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.


SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?

GLAUCO - A princípio nada veria.

SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.

GLAUCO - Não há dúvida.

SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.

GLAUCO - Fora de dúvida.

SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.

GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.

SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?

GLAUCO - Evidentemente.

SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?

GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.

SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?

GLAUCO - Por certo que o fariam.

SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.

Extraído de "A República" de Platão . 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291

mercredi 10 juin 2009

A BARCA






I

No início era o Vazio.
Que repousava sobre si mesmo
Acariciando toda Sua existência.
Através de uma esfera de Luz.
E esse sem forma que tudo abarca
Inspirou a existência à vir a ser.
E dançando sobre o Nada
Criou a Forma a partir de si.
E dividiu-a em duas partes
Iguais, contrárias, complementares
E ilusórias.
E esse Dois se partiu em mil.
E formou toda capa externa e impermanente
Também chamada de espaço.
E desse espaço infinito
Brotou a matéria e a consciência.
Que guiada pelo tempo
Viaja numa jornada de volta
Para casa.


II

Uma dessas sementes brotou
Num cantinho desse todo.
Germinou no solo dessa Terra
Azul.
E se dividiu em muitos.
A partir do fogo
Da água
Do ar e dessa própria terra.
Numa era de ouro.
No inicio da jornada de volta.
Onde o Certo era tão obvio
Quanto a luz.
Onde o Caminho era tão reto
Quanto o circulo.
Onde a gazela e o leão
Eram um só.
Onde o Bem não necessitava
De motivo algum para sê-lo.
Onde Tudo estava presente
Pois não havia nada
Que se pudesse fazer.
Mas esse espaço
Continuou a se mover
Guiado pelo tempo.


III

E essa Dança divina
Tomou consciência de sua nova forma.
E maravilhou-se em si mesma.
E mergulhou tão fundo
Em sua própria imagem
Que se esqueceu
De sua origem.
E se pensou única e bela.
E adormeceu
Achando que havia acordado
De um sonho infantil.
Precisou agir
Pois não se bastava.
Precisou criar
Pois não mais se continha.
Precisou comer, beber e dormir
Porque se esquecera
de que era feita de luz.


IV

E do esquecimento
Veio a dor.
E da dor, o medo.
E do medo, as trevas
Da ignorância.
De não se reconhecer.
E a divina dança
Se transformou numa marcha
Faminta de sangue.
Faminta de si mesma
Faminta de sua própria luz.
E essa marcha se espalhou
Pela esfera.
Onde agora o leão
Não mais reconhecia a gazela
Como sua mãe e irmã.
Pois agora o tempo
Era alimentado pela força bruta
Da matéria.
Que se auto abastecia
E se autoregorgitava
Num balé de terror divino.


V

E cada forma seguia
Fazendo sempre
O que sempre fez
Imaginando estar fazendo algo diferente.
Presa num círculo de fogo.
Circulando sem rumo
Entre as quatro estações.
Até que os céus
Atenderam aos chamados da terra
Azul.
E gotejaram luzes de Cor
Que estremeceram a face
Refletida no lago.
E acordaram
O dançarino Divino
Que habita todos os seres.
E despertaram
O Vazio de Luz
Contido nas sementes
Adormecidas


VI

E as sementes
Recordaram
Que eram filhas da luz
E desabrocharam
Em folha, fruto e som.
E uma grande nota musical
Se espalhou e regou toda terra
Azul.
E toda disputa
Perdeu o sentido.
E toda marcha
Passou a ter cor.
E toda dança novamente
retomou consciência
De que era uma
Em muitas


VII

E essa dança
Alimentou a dor
E desfez a ilusão
das trevas.

“Pois meus sonhos
Não são nada.
Assim como meus pesadelos
Também não são nada.
Assim como a alegria
Não é nada.
Assim como a dor
Não é nada.
Para que então
Tudo
Não se torne
Nada.”

A BARCA - Ricardo Castro 1998