mercredi 30 novembre 2011

O capitalismo trivializou a paixão

Em "Monogamia", o senhor diz que não há nada mais escandaloso do que um casamento feliz. Por quê?

Adam Phillips - O que amamos e odiamos num casamento feliz é ver nossos primeiros desejos e medos acontecendo na vida real. Toda criança começa seu desenvolvimento em uma relação monogâmica, com a mãe. E a maioria passa os primeiros 11, 15 anos da vida muito conectada a mãe e ao pai. É uma espécie de monogamia bissexual. Crescer é passar da necessidade de ter só uma pessoa para a necessidade de ter duas (mãe e pai) e a necessidade e a capacidade de se relacionar com várias.

Daí nossa tendência para a relação monogâmica?

A relação monogâmica é uma memória muito poderosa, é onde começamos. Hoje, muita gente acha difícil manter uma relação monogâmica. Queremos coisas opostas, desejamos coisas proibidas e não sabemos que queremos essas coisas. A cultura torna os desejos muito problemáticos. Muitas pessoas desejam um relacionamento monogâmico, apesar de não serem capazes de lidar com ele.

Quais são as maiores dificuldades da monogamia?

Os problemas surgem quando as pessoas desejam esse tipo de relacionamento, mas não conseguem realizá-lo. E para quem pensa que é isso o que deseja, mas descobre que não era o que queria.

A solução, no caso dessas pessoas, é a infidelidade?

Sim. E pode dar certo, mas sempre com conflito. Todo mundo tem ciúme sexual, ninguém suporta dividir seu parceiro de sexo. Alguns dizem que suportam, mas é impossível. Se amamos e desejamos alguém, não queremos dividi-lo com outros.

Isso tem a ver com a memória da relação entre mãe e bebê?

Sim. E também com o fato de termos necessidades e só determinadas pessoas poderem satisfazê-las.

Concorda com a tese de que mulheres são por natureza propensas à monogamia?

Acredito na teoria da evolução de Darwin, mas penso que evolução envolve cultura. Há boas explicações em termos de sobrevivência da espécie para sustentar que a mulher quer um homem para a vida toda e o homem deseja mais parceiras, mas não acho que a questão da sobrevivência seja a explicação final. Se fosse, a família nuclear seria a única coisa óbvia a se fazer.

Há diferentes formas de garantir a reprodução da espécie, há muitos jeitos de criarmos as crianças. E muitas formas de fazer sexo, não explicadas por essas teorias.

O senhor diz que uma sociedade sem a possibilidade de infidelidade seria perigosa...

Seria uma mentira. Colocaria pressão demais nos casais, obrigando um a ser tudo para o outro. É uma demanda moral irrealista. Outro perigo é a monogamia acabar com o desejo e virar uma prisão.

Acha a sociedade hipócrita em relação à monogamia?

Sim, se ela afirmar que é a única forma boa de relação para todos e o tempo todo.
Mas hoje também há muita gente dizendo que toda relação monogâmica é hipócrita, o que não é verdade. Para alguns, é um desejo genuíno, uma experiência real.

Tão real quanto traição?

As duas formas são construções sociais. O capitalismo trivializou a paixão, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor. Isso leva a pensar que as relações sexuais são algo que se compra no mercado só para levar a vida adiante. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais. E valoriza demais o prazer. E, para a psicanálise, o prazer é sempre um problema. Qualquer pessoa que te venda um prazer fácil está mentindo. Se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos.

Como lidar com os conflitos?

As crianças deveriam ter aulas na escola sobre frustração, para entender como ela é valiosa. Para adultos, a psicanálise ajuda, é educativa. Os adultos precisam aprender a ser adultos. A maioria age como adolescente, não quer crescer, acredita em fórmulas mágicas de relacionamento.

A fórmula 'feliz para sempre'?

Claro, é um ideal enganoso. Assim como achar que a pessoa que não se prende a ninguém é livre. São dois ideais igualmente enganadores.

A monogamia não é também uma forma de evitar riscos?

Pode ser. Correr riscos é muito importante, mas não devemos pressupor que todos os riscos estão na infidelidade. Fidelidade é tão arriscada quanto traição, há muitos riscos na monogamia.

Quais são eles?

Numa relação monogâmica, cada parceiro sabe e não sabe muitas coisas íntimas sobre o outro. Outro risco é descobrir as limitações do relacionamento humano, o quanto a outra pessoa pode de fato fazer por você. E há o risco de formar uma família.

Por que não considerar esses riscos tão atraentes quanto os riscos da traição?

Não fomos capazes de produzir relatos excitantes sobre a monogamia. Os bons romances são sobre adultério. Por isso, é difícil articular de forma interessante os prazeres da monogamia. Fica parecendo algo tedioso. Além disso, fomos educados para acreditar que a vitalidade está na heresia. Mas pode haver vitalidade nos dois tipos de relacionamento. O ocidental moderno e culto assume que a vitalidade esta só na heresia. Também está, mas essa não é toda a verdade.

Do que precisamos, afinal?

De boas histórias que nos ajudem a viver. As únicas verdades úteis são as que nos ajudam a viver. Num relacionamento, o que você precisa é criar uma história na qual se sinta vivo com a outra pessoa.

Hoje, temos mais opções para criar essa história?

Não sei. A cultura liberal oferece mais escolhas do que havia antes. Mas o capitalismo cria a ilusão de que temos muitas escolhas, quando na verdade temos muito poucas.

A única escolha é ser feliz ou não. É isso que está sendo vendido como o único programa: quanto prazer você pode ter, quão feliz pode ser. Só que felicidade pode ser como uma droga, nunca satisfaz, você quer sempre mais. Há coisas muito mais importantes que a felicidade: justiça, generosidade, gentileza.

http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1013893-ser-fiel-e-tao-arriscado-quanto-trair-diz-psicanalista.shtml


mercredi 23 novembre 2011

A escalada da insanidade coletiva


Uma mídia perniciosa que passa de forma coordenada, repetida e pragmática a imagem de que todos os políticos do governo federal são incapazes e corruptos. Movimentos de “contestação” incentivados por essa mídia, com aparência de progressistas. mas que revelam as instâncias mais conservadoras da sociedade. Uma oposição conservadora alinhada com a mídia, com vontade de conquistar o poder a qualquer custo. E o ódio político levado ao ponto extremo de se desejar abertamente a morte dos opositores.

Poderíamos estar falando da política brasileira atual. E de fato estamos, em certa medida. Mas esse cenário representa dois momentos próximos entre si, na história do país, que servem como um enorme alerta a todos nós: o cenário do parágrafo de cima representa o mês de agosto de 1954, às vésperas do suicídio de Getúlio Vargas, e o mês de março de 1964, ás vésperas do golpe militar.

Em 1954, em seu terceiro mandato, Getúlio Vargas sofria pressões quase insuportáveis da imprensa, comandadas por um dos principais expoentes da oposição: Carlos Lacerda, da ultraconservadora UDN (União Democrática Nacional). Já naquela época, os partidos tinham nomes que não representavam absolutamente nada.

A oposição lacerdista chegou ao ponto, em 1954, de forjar um atentado a Carlos Lacerda, assassinando um oficial da aeronáutica, e colocar a culpa na guarda presidencial de Getúlio Vargas. Mas Vargas (que, diga-se, não era nenhum santo e tinha inúmeros defeitos) surpreendeu a todos, suicidando-se. E o seu suicídio segurou a escalada da insanidade coletiva, patrocinada pela mídia e pelos partidos conservadores, por mais dez anos, dando espaço para o governo de Juscelino Kubitschek e para o malfadado governo de Jânio Quadros.

Quando João Goulart assumiu, em 1961, após a ridícula renúncia de Jânio Quadros, o cenário se assemelhava ao das vésperas da morte de Getúlio Vargas. Agravava a situação, ainda, a escalada da luta contra o comunismo no cenário internacional, que fomentava o imperialismo e a política intervencionista norte-americana, especialmente na América Latina. Os EUA ainda estavam rescaldados com o alinhamento de Cuba com os inimigos soviéticos, e não admitiriam que outro país latino-americano tomasse destino semelhante. A Operação Condor patrocinou ditaduras no Chile (que chegou a ter o presidente socialista Salvador Allende), na Argentina, no Uruguai e no Brasil, dentre outros países da América Latina. E João Goulart, trabalhista que gozava de grande popularidade entre os trabalhadores, foi vítima deste contexto histórico.

Os ânimos políticos estavam acirrados ao extremo. Grupos conservadores organizavam-se e formavam eventos como a “Marcha pela Família com Deus pela Liberdade”, que, ao contrário de incentivar a liberdade, jogaram o Estado democrático brasileiro para um dos períodos mais negros de sua história. Uma ditadura de 21 anos que têm sido relembrada e colocada como “revolucionária” por parte da mídia atual.

Não por acaso. Quando você percebe que parte da mídia e das pessoas começa a se manifestar abertamente a favor de um período obscuro e triste da história nacional, e encontra eco em setores da sociedade, é sinal que estamos novamente em uma escalada de insanidade coletiva. Quando um sujeito da principal rede de televisão do país fala em rede nacional que “bom mesmo era na época da ditadura”, como fez Alexandre Garcia no Bom Dia Brasil, da Rede Globo, na última quinta-feira, e encontra eco em várias pessoas, é sinal de que precisamos parar e repensar nossa postura política com urgência.

Mais grave que isso é a absoluta desvalorização da vida humana, principalmente quando aplicada aos políticos. Nesse sábado, o ex-presidente Lula foi diagnosticado com um Câncer de Laringe. Tratável, é verdade, mas grave. Em meio às muitas manifestações afetuosas e de torcida pelo presidente, porém, vimos muitas manifestações comemorando a doença e torcendo pela morte do ex-presidente. Muitas delas, inclusive, de militantes dos partidos de oposição. Quando seu ódio político faz você desejar a morte de alguém, e sinal de que você não entende nada de política. Nem da vida. É sinal de que você está completamente cego.

E isso não é algo novo. Programas de humor na TV fazem piada constantemente, desejando a morte de políticos como o ex-presidente José Sarney, dentre outros. Indiferente às posturas políticas do mesmo, que devem ser discutidas em outra oportunidade, uma coisa é verdadeira e merece menção: a vida humana deve ser mais valorizada do que qualquer postura política, e a política está subordinada à dignidade humana, não podendo jamais transcendê-la. Todas as vezes em que isso ocorreu, na história da humanidade, ocorreram guerras, conflitos e genocídios. A política é a arena das ideias, das propostas e dos debates. Jamais esse direito deve ser privado de alguém, em hipótese alguma.

Não estou denunciando nenhum “esquema golpista” da parte de ninguém. Meu alerta é um só: a história é cíclica, e o Brasil, historicamente, alternou ciclos, na República, de liberdade e repressão.

Ilustrando:

1889 – 1894: República da Espada, política centralizada e de repressão, com a Revolução Federalista e a Revolta da Armada.

1895-1930: República do café-com-leite, com um pacto oligárquico entre SP e MG e a realização de eleições para presidente.

1930-1945: República de Vargas, centralizada em torno do presidente, com restrição das liberdades civis e forte repressão às Intentonas Comunista e Integralista.

1946-1964: período de uma conturbada democracia, em que foram eleitos quatro presidentes e só dois completaram seus mandatos.

1964-1985: ditadura militar, com forte repressão e constantes violações aos direitos humanos, além do combate a grupos armados

1985-2011: período democrático, com seis eleições diretas, quatro presidentes eleitos democraticamente, dois reeleitos e um deposto por corrupção.

Percebam: os ciclos de repressão e liberdade se alternam repetidamente. E, obviamente, a liberdade é um valor bem mais caro a todos nós do que a repressão.

“Um povo que não conhece a sua história está condenado a repetí-la”. Esta frase, atribuída a Ernesto Che Guevara e atualmente popularizada em uma série de comerciais do History Channel, mostra-se verdadeira de uma forma assustadora. E traz o caminho para não repetirmos os erros do passado: a educação, a cultura. Um povo deve se conhecer, forjar sua própria identidade, envergonhar-se e orgulhar-se dos diversos momentos de sua história e não acreditar sem contestação em frases dogmáticas.

A História de um povo está em constante transformação. E a transformação do povo brasileiro, no momento, é não deixar a atual escalada de insanidade coletiva, que se avizinha novamente, produzir os mesmos efeitos perniciosos e 1954 e 1964. Para isso é necessário um chamado à razão, aos valores democráticos, à valorização da educação como ente transformador da sociedade e o amadurecimento político geral da nação, com a discussão saudável e construtiva de ideias de parte a parte.

Chega de revolta, chega de revanchismo. Vamos voltar à razão. O Brasil não precisa de mais um período de obscurantismo e repressão. Aprender com os erros do passado é a melhor forma de tornar nosso futuro melhor.

A fala do locutor do History Channel termina assim, em todos os comerciais da série: “Se você não quer que os próximos 500 anos sejam iguais aos 500 anos que passaram, reflita”.

Eu só posso concordar com ele.

http://politicasantoandre.wordpress.com/2011/10/30/a-escalada-da-insanidade-coletiva/


samedi 19 novembre 2011

autoilusão


"Você acha que sabe como o mundo funciona, mas a verdade é que a psicologia e a ciência cognitiva vêm demonstrando que nossos pensamentos e escolhas são influenciados por noções preconcebidas e padrões de pensamento sobre os quais não temos controle consciente"

"O equívoco: Você é um ser racional que vê o mundo como ele realmente é. A verdade: você está tão iludido quanto todas as outras pessoas, mas tudo bem, é isso que nos mantém sãos"

Por que pensamos ser mais espertos do que somos na realidade?

David McRaney - A pesquisa que fiz aponta para a autoestima. Estamos profundamente comprometidos em manter nossas cabeças erguidas e nossos egos inflados. Isso ajuda a nos sentirmos eficientes, com tudo sob controle, competentes e amados. Mesmo com alguns exageros, esse sentimento nos faz bem na maioria das vezes. É o que nos tira da cama pela manhã e nos dá a vontade de tentar fazer coisas que não faríamos se fôssemos brutalmente honestos sobre nosso lugar no mundo, nossas habilidades, inteligência, capacidade de atração, e assim por diante.

Essa autoilusão é uma maneira de nossa mente nos proteger do "mundo perigoso" lá fora?

Sim. Em alguns aspectos, isso é claro. Mas há muitas maneiras de nos autoiludirmos. A desconexão é acreditar que você é uma milagrosa criatura de racionalidade e lógica. Quando você vê a si mesmo e do resto da raça humana dessa forma é que surgem problemas.

De que modo essa visão afeta o nosso relacionamento com o mundo?

Nas condições normais, esse mecanismo funcionam bem. Mas quando fazemos escolhas pessoais ou políticas públicas baseadas na suposição de que nós vamos sempre fazer a coisa certa, ou a mais inteligente, é que nós ficamos em apuros. Devemos ser honestos e admitir as nossas fraquezas. Deveríamos trabalhar para fazer escolhas que levem em conta nossas tendências de autoilusão.

Como podemos lidar com essa tendência de nossa mente?

Nada disso pode ser eliminado. É apenas parte de quem somos. Temos essa predisposição para tentar confirmar o que já pensamos e também para a procrastinação. Julgamos as pessoas com base em estereótipos. Vemos o mundo através da lente da falácia do bom atirador texano [analogia psicológica para a tendência de se analisar uma situação continuamente até encontrarmos algum sentido, mesmo que forçado. O nome vem de uma piada em que um fazendeiro do Texas atira algumas vezes na parede de um celeiro e somente depois desenha um alvo tendo como centro a região com maior quantidade de tiros e diz ser um excelente atirador]. Assim, deveríamos construir nossas vidas em torno desses fatos sobre quem somos.

Na prática, o que pode ser feito para escapar dessas armadilhas?

Você tem que blindar sua vida. Trate o seu "futuro eu" (aquele que vai fazer as coisas amanhã) como uma criança. Você não pode simplesmente dizer a uma criança: "Olha, não coloque moedas nas tomadas". Você avisa e também coloca tampas de proteção nas tomadas. Você não pode confiar que seu futuro eu não vai comer alimentos que engordam, não pode confiar que ele vai fazer todas flexões ou que vai estudar para os testes e ficar fora do Facebook. Em vez disso, você deve tornar difícil para o seu futuro eu fazer essas coisas. Mantenha esses alimentos fora da casa. Pague uma academia para encorajá-la a justificar sua malhação. Use programas para limitar sua conexão com a Internet. Há muitas estratégias, mas a chave é planejar com antecedência e não confiar que seu futuro eu vai fazer o que é melhor para você.

No livro, você associa essas armadilhas mentais à necessidade de sermos coerentes. Psicologicamente, qual é o problema da incoerência?

A falta de coerência levanta várias questões em nossa cabeça. Ela causa ansiedade sobre se você está ou não sendo um bom membro para sua sociedade, família ou grupo social. Se as coisas estão indo bem e você não está sendo satirizado por seus pares, ser coerente te ajuda a manter as coisas desse jeito. A sensação de estar sendo incoerente aumenta o medo de julgamento, que está ligado ao medo do isolamento social. Além disso, para manter a sua auto-estima elevada, quaisquer características que você acredite ser importante em uma pessoa são as que você vai procurar ver em si mesmo. Quando a realidade não corresponde ao seu modelo mental, você ou se justifica e reescreve os fatos para que se sinta melhor, ou ajusta suas atitudes para reduzir a divergência.

Esses mecanismos são explorados externamente de alguma forma?

Tudo que está quantificado pela psicologia já foi há muito tempo descoberto pela publicidade, negócios, mágicos, golpistas e outros. Se uma estratégia persuasiva funciona em seres humanos e pode trazer dinheiro, com certeza já é explorada por alguma instituição. Isso funciona na fidelização de clientes, por exemplo. Se você escolhe uma marca, vai manter sua escolha ao longo do tempo em parte porque você tem uma profunda necessidade de ver a si mesmo como uma pessoa competente em suas decisões passadas e consistente com as que vai tomar no futuro.

Nossa vida cotidiana pode ser melhor se tomarmos consciência de nossa autoilusão?

Eu acho que isso nos dá uma humildade saudável e um senso de conexão com nossos companheiros seres humanos. Estamos todos juntos nisto, somos todos falhos e tolos. Vamos admitir isso e seguir em frente.

You Are Not So Smart
David McRaney

vendredi 4 novembre 2011

neuromania


Por que estamos tentando explicar tudo pela neurociência?
Em parte por causa dos extraordinários avanços da área depois de mais pesquisadores terem acesso a equipamentos de ressonância magnética funcional [que tira “fotografias” da atividade do cérebro]. Eu mesmo fiz minhas contribuições para a neurociência. Só que essa evolução no entendimento do cérebro faz com que as pessoas confundam o fato de a atividade cerebral ser uma condição necessária para a consciência com a noção de que ela em si seria a própria consciência. É o que chamo de neuromania: achar que tudo que somos se deve ao cérebro e que a neuroatividade é a mesma coisa que nossa consciência.

Estamos enxergando a nossa mente como uma simples máquina?
Exatamente. Se passamos a achar que a consciência é apenas fruto de um conjunto de atividades cerebrais, basta compreender esses mecanismos para fazer nós mesmos funcionarmos melhor. Quem tem esse tipo de pensamento acha que a neurociência pode ser usada para fazer políticas sociais. Agora, dizem que não deveríamos nos preocupar com ideologia da direita ou da esquerda, mas com o que o hemisfério direito faz, ou com o que o hemisfério esquerdo coordena.

Mas há cientistas estudando drogas para mudar o comportamento, como a oxitocina.
Só posso rir ao ouvir isso. Quando era estudante, a oxitocina era a substância responsável por fazer o útero contrair. Agora, as pessoas viram que ela tem efeito, em alguns roedores, de fazer eles ficarem mais fiéis aos outros. Mas não há a possibilidade de administrar essa droga e transformar todo mundo numa espécie de zumbi moral, isso é bobagem. Se parar para pensar, há um problema maior nas formas mais tradicionais de manipular a mente humana, como o álcool..

O fato de algumas substâncias poderem mudar nossas atitudes coloca em dúvida a noção de livre arbítrio. Pesquisadores dizem ser impossível encontrar evidêncais de que ele existe.
Eu acredito em livre arbítrio e a razão pela qual os neurocientistas não conseguem encontrá-lo é porque têm uma aproximação em terceira pessoa, ou um ponto de vista objetivo sobre isso. Eles nos vêem, inescapavelmente como objetos materiais num mundo material. Não há como ver livre arbítrio dentro disso. Se você retira o ser em primeira pessoa, a liberdade desaparece. Isso traz a questão de também um determinismo cultural. Pensadores sugerem que você só pode ter livre arbítrio se não há influências sobre você, incluindo as influências que vêm do fato que você nasceu de um jeito e não de outro. Você não escolheu ser de um jeito em particular. Na minha visão, o livre arbítrio não vem de três coisas. Uma é que nós somos, em substância, os autores das nossas ações, no sentido que elas não teriam ocorrido sem nós. A segunda, é que essas ações expressam nós mesmos. A terceira é que nós devemos refletir o que as causas de eventos. Se você olha o que criamos coletivamente, nós criamos um mundo inteiro fora da natureza. Você nunca achará o livre arbítrio olhando com os instrumentos errados, que são os instrumentos da neurociência. Se você procurar pelo livre arbítrio no lugar certo, você o encontrará.

Quais são os instrumentos corretos?
Certamente não são scanners cerebrais. Para ver isso, devemos olha para o dia a dia. Se eu caio das escadas, isso claramente não é uma ação de livre-arbítrio como eu falar contigo. Se eu tenho um ataque epilético, isso não é uma ação livre do mesmo jeito que é escrever um livro sobre epilepsia. Nós podemos notar nos eventos que nos cercam que alguns são claramente expressão do mundo físico e biológico e outros são claramente diferentes disso. As minhas ações fazem sentido para mim dentro do tipo de pessoa que eu me tornei e que eu fiz eu mesmo me tornar por décadas. Veja o aprendizado. Eu aprendo me posicionando para adquirir os fatos com minha experiência e expertise. Animais não ensaiam as coisas, não praticam as coisas, não memorizam. Eles não se esforçam para adquirir comportamentos adaptativos. Simplesmente acontece. Isso bem diferente de nós.

O que são as pseudo-disciplinas que você cita em seu livro?
Normalmente essas disciplinas são um híbrido usando “neuro” ou “evolucionário” e alguma coisa. Por exemplo, neurodireito, neuroestética, neurocrítica literária, ética evolucionária, teologia evolucionária. São pseudo porque a neurociência tem muito pouco a dizer sobre o objeto particular de seus estudos. Até quando a neurociência parece ajudar em algo relevante, é prematuro usá-la para tirar conclusões.

Em que situação é prematuro, por exemplo?
Pegue a neurociência usada em crítica literária. Alguns dizem que se realmente queremos entender a resposta de um leitor a um livro, precisamos olhar ao que o cérebro desse leitor faz enquanto ele lê. Você pode expor pessoas a sentenças individuais ou palavras e ver como o cérebro responde, se a palavra ativa áreas relacionadas a qualidades poéticas. Só que, na verdade, ler um livro está longe de ser uma resposta a uma série de estímulos associados com palavras. É se engajar com o mundo que está se abrindo na sua frente, questionar a posição do escritor, imaginar o que está acontecendo, ser um pouco crítico sobre a verossimilhança da história e pensar no que isso poderia te trazer sobre o mundo em geral. O leitor não é apenas um cérebro que está respondendo a algumas sucessões de estímulos discretos, é um ser que está respondendo no nível mais alto a um trabalho de arte extremamente complexo.

Mas e no futuro? Será possível ter uma conclusão só por dar uma olhada em complexos padrões cerebrais?
Quando temos um pensamento, nós conseguiremos um dia ter uma idéia completa detalhada de qual é a atividade cerebral correspondente a um pensamento? Minha opinião é que não. Algumas vezes nesta manhã eu pensei. Ah, vou ter uma conversa com aquele cavalheiro do Brasil. Esse pensamento nunca tomou a mesma forma no meu cérebro duas vezes. Qualquer pensamento tem inúmeras possibilidades de formas de ser realizado dentro da nossa mente. Claramente, não há uma parte da atividade no meu cérebro correspondente a ter uma conversa com você hoje. Mas há uma questão ainda mais profunda nisso. Vamos supor que nós temos a capacidade de fazer estudos no meio da vida real, por exemplo, de alguém se sentindo enciumado por causa a pessoa amada está saindo com alguém. Vamos supor também que nós possamos gravar cada pequena neuroatividade observada nessa situação real. O que temos? Nós temos a descrição de alguns neurônios sendo acionados e alguns não. Nós temos uma gigantesca base de dados de 0 ou 1 disso. Eu não tenho certeza que isso poderia me dizer qualquer coisa sobre o estado de estar apaixonado ou revelar alguma coisa para mim que eu já não soubesse da minha própria experiência ou de ler de experiências de outras pessoas.

Não seríamos capazes de interpretar esses dados?
Não nos levaria a lugar algum. Quebrar o nosso amor em partes que supostamente estariam relacionadas não nos levaria a nenhum lugar no entendimento do que é realmente o amor. É como descrever a minha jornada para um bar encontrar com meus amigos em termos de uma mecânica newtoniana, um monte de movimentos e a energia dispendida. Isso não iria mostrar nada sobre meu prazer em ver os meus amigos no bar.

Esse tipo de pensamento estaria reduzindo a nossa humanidade?
Certamente. Reducionismo está em todo. E a manifestação mais óbvia de reducionismo está em reduzir o mundo ao redor a uma série de estímulos discretos. O que mais me impressiona são nos estudos relacionados ao amor. Sandy Zacki and Ananda Spartels , por exemplo, expuseram voluntários a uma sucessão de fotos com pessoas das quais eles eram amigos. Depois, mostraram a eles fotos de pessoas pelas quais estavam apaixonados. Comparando as respostas dos cérebros aos estímulos, viram o que havia de “a mais” na paixão e concluíram que o amor era uma certa neuroatividade em determinada parte do cérebro. Só que estar apaixonado é muito mais do que responder a um estímulo físico. É algo incrivelmente complicado e o que a neurociência nos oferece sobre isso é apenas algumas sequências de áreas ativadas no cérebro ao se dar um estímulo.

Cresce o risco de determinismo biológico?
Sou ateu e humanista, mas há um trabalho espiritual e intelectual interessante que tem de ser feito para entendermos com profundidade o que somos. É um grande erro achar que, se não viemos de uma força sobrenatural como Deus, somos meramente parte da natureza, como animais. Há o risco de, quando as pessoas começam a falar de neuropolítica, pensarem em neurodireito para substituir procedimentos na corte com justiça biológica baseada em scanners cerebrais. Acho aí que entraríamos em sério perigo.

O dawinismo social está de volta?
É parte da minha preocupação. Essa maneira muito científica de ver a humanidade. A redução do ser humano a ondas cerebrais, me lembra muita da convergência entre o pensamento pavloviano e do socialismo materialista no começo do século 20. A ideia de que nós precisaríamos de engenheiros de seres humanos, de que a ciência iria nos mostrar do que realmente somos feitos e que as nossas políticas seriam baseadas em ciência física real, etc. Esse tipo de cientificismo tem uma história muito triste no passado.

Você também critica o que chama de darwinites. O que é isso?
É a crença de que Darwin não apenas explica como o organismo do homo sapiens se transformou no que é hoje — o que certamente ele faz—, mas que explica também como somos e agimos atualmente. Há muitas pessoas que acham que, por causa de Darwin, temos que negar um abismo imenso que existe entre nós e outros animais. Isso está ligado à neuromania. Se você acredita que a mente é idêntica às ondas cerebrais e acredita que o cérebro é um órgão que evoluiu, então, certamente, acreditará que o nosso modo pensar é apenas moldado pelo evolucionismo. Nossas ações e a forma como agimos, tudo seria a respeito de simplesmente maximizar a passagem de nosso código genético e nada mais. Isso coloca em risco a própria noção de livre arbítrio.

O que você sugere?
Olha, meu livro é bastante negativo. Parafraseando John Locke, meu trabalho é limpar a sujeira do caminho que leva até a verdade. Apesar disso, eu tento apontar no sentido de dizer que nós temos que fazer uma certa reavaliação radical do nosso pensamento, no sentido de pensar sobre o lugar da humanidade e da consciência humana na natureza. E temos de começar nos fazendo questões fundamentais sobre a relação com o material de que somos feitos. Há algo de interesante ocorrendo entre alguns filósofos que tentam escapar da noção de que a mente é a atividade do cérebro. E que o cérebro, como um órgão evoluído, é simplesmente o servente de um processo de evolução. Há algo de bom começando em termos filosóficos nessa área, mas está num estágio muito inicial e precisamos de um gênio para vir e pensar mais profundamente sobre onde nós estamos nessa discussão neste momento. E eu não sou este gênio.

Médico, crítico literário e filósofo — e referência na Inglaterra nas três áreas —, Raymmond Tallis diz que usar a atividade cerebral para explicar todos os aspectos do comportamento humano pode colaborar com um novo tipo de darwinismo social. Em seu livro Aping mankind (“Humanidade primata”, sem edição no Brasil), ele afirma ver riscos na volta da ideia, usada durante o nazismo, de que teorias científicas baseadas no cérebro podem ser usadas para formular leis e conceitos sobre ética.

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI272312-17770,00-NEUROCIENCIA+PARA+TUDO+E+BOBAGEM.html