jeudi 13 août 2009

O Trikaya



JÁ DISCUTIMOS OS DOIS ENFOQUES POSSÍVEIS com relação à espiritualidade: materialismo espiritual e transcender o materialismo espiritual. O estilo de Padmasambhava é transcender o materialismo espiritual, desenvolver sanidade básica. Desenvolver sanidade básica é um processo em que trabalhamos em nós mesmos e no qual o caminho em si se torna a base de trabalho ao invés do resultado. O caminho em si é o que nos inspira constantemente, ao invés de, como no caso da cenoura e do burrico, promessas sobre certas realizações que estão à frente. Em outras palavras, para tornar isto completamente claro, a diferença entre materialismo espiritual e transcender o materialismo espiritual é que no materialismo espiritual as promessas são utilizadas como uma cenoura mantida na frente de um burrico, levando-o a todos os tipos de jornadas; ao transcender o materialismo espiritual, não há uma finalidade. A finalidade existe em cada momento de nossa situação cotidiana, em cada momento de nossa jornada espiritual.

Desta forma, a jornada espiritual se torna tão excitante e bela como se já fossemos um Buda. Há constantes descobertas, constantes mensagens, constantes advertências. Há também um constante cortar, constantes lições penosas tanto quanto prazerosas. A jornada espiritual de transcender o materialismo espiritual é uma jornada completa e não uma que depende de uma finalidade externa. É essa natureza completa da jornada que discutiremos em relação à vida de Padmasambhava. Esta natureza completa pode ser descrita em termos de certos aspectos: contém espaço básico, ou totalidade; contém energia e brincadeira; e também contém aplicação pragmática, ou lida com as situações da vida como elas são.

Nós temos três princípios ali: a totalidade como a completa percepção do ambiente no caminho, uma percepção lúdica no caminho, e a percepção prática do caminho. São estas as três categorias que se desenvolvem. Antes de entrar em detalhes sobre os oito aspectos de Padmasambhava, seria bom discutir estes três princípios em termos de como Padmasambhava os manifesta a nós como um caminho. Primeiro, temos que olhar mais de perto a natureza do próprio caminho. O caminho é nosso esforço, a energia que colocamos nas situações diárias cotidianas; consiste de nossa tentativa de trabalhar com as situações diárias cotidianas como um processo de aprendizado independentemente de nossa situação ser criativa ou destrutiva. Se você derrama um copo de café na mesa de quem está a seu lado ou se você passa o sal para alguém, é a mesma coisa. Estes são acontecimentos que ocorrem o tempo todo nas situações de nossa vida.

Estamos constantemente fazendo coisas, constantemente nos relacionando com as coisas ou rejeitando as coisas. Há uma brincadeira constante. Não estou particularmente falando sobre espiritualidade nesse momento, mas apenas sobre a existência cotidiana: estes eventos que ocorrem o tempo todo nas situações de nossa vida. Este é o caminho.

O caminho não precisa necessariamente ser rotulado como espiritual. É apenas uma simples jornada, a jornada que contém troca com a realidade disto e daquilo ou com a irrealidade dessas coisas, se você preferir. Relacionar-se com essas trocas o processo da vida, o processo de ser é o caminho. Podemos estar pensando em nosso caminho em termos de atingir a iluminação ou atingir a egoidade, não interessa. Em qualquer dos casos, nunca estamos aprisionados em uma forma qualquer. Podemos pensar que ficamos presos. Podemos nos sentir entediados com a vida e coisas assim; mas nós nunca realmente ficamos chateados ou realmente ficamos presos. A repetição da vida não é realmente repetitiva.

É composta de acontecimentos constantes, situações que se desenvolvem continuamente, o tempo todo. Este é o caminho. Deste ponto de vista, o caminho é neutro. Não é inclinado para um lado ou para o outro. Há uma constante jornada acontecendo, que começa no momento da separação básica. Começamos a nos relacionar em termos de o outro, eu, meu, nosso, e etc. Nós começamos a nos relacionar com as coisas como entidades separadas. O outro é chamado eles e esta coisa é chamada eu . A jornada começa bem aí. Esta foi a primeira criação de samsara e nirvana. Logo no principio, quando decidimos nos conectar de alguma forma com a energia das situações, nos envolvemos numa jornada, no caminho.

Depois disso, desenvolvemos uma forma determinada de nos relacionarmos com o caminho, e o caminho se torna condicionado entre ou a espiritualidade ou o mundano. Em outras palavras, a espiritualidade não é realmente o caminho, mas sim uma forma de condicionar nosso caminho, nossa energia. Condicionar nosso caminho acontece em termos das três categorias que já mencionei. Acontece, por exemplo, em termos da totalidade da experiência, a primeira categoria. Este é um aspecto de como nos relacionamos com nosso caminho em termos da totalidade de nossa experiência. O caminho está acontecendo de qualquer forma, então nos relacionamos com ele de uma determinada forma, tomamos uma atitude particular com respeito a ele. O caminho então se torna ou um caminho espiritual ou um caminho mundano. Esta é a forma com que nos relacionamos ao caminho; é assim que começa nossa motivação. E nossa motivação tem um padrão tríplice.

Na tradição budista, estes três aspectos do caminho são chamados darmakaya, sambogakaya e nirmanakaya. O condicionamento do caminho acontece em termos destes três aspectos. O processo contínuo do caminho tem uma atitude total determinada. A jornada toma um padrão que tem em si um elemento de sanidade básica total. Esta sanidade total, ou qualidade iluminada, não é particularmente atrativa no sentido usual. É a sensação de completa abertura que já discutimos. É essa abertura total e completa que nos torna capazes de transcender esperança e medo. Com esta abertura, nos relacionamos com as coisas como elas são ao invés de como gostaríamos que elas fossem. Esta sanidade básica, este enfoque que transcende esperança e medo, é a atitude da iluminação.

Esta atitude é muito prática. Não rejeita o que surge no caminho, e não se torna apegada ao que surge no caminho. Ela apenas vê as coisas como elas são. Assim esta é uma abertura total e completa completa boavontade de olhar no que quer que surja, trabalhar com isto, e relacionar-se com isso como parte do processo geral. Esta é a mentalidade darmakaya do espaço que tudo permeia, de incluir tudo sem inclinações. É uma forma mais ampla de pensar, uma forma mais grandiosa de ver as coisas, em contraposição a ser mesquinho, pequeno. Falamos do enfoque darmakaya enquanto não nos relacionamos com o mundo como nosso inimigo. O mundo e nossa situação oportuna; é aquilo com que temos que trabalhar. Nada que surja nos faz lutar com o mundo. O mundo é essa situação extraordinariamente rica que está aqui; ela é cheia de recursos. Este enfoque básico de generosidade e riqueza é o enfoque darmakaya. É um pensar totalmente positivo. Esta visão mais ampla é a primeira atitude em relação ao caminho. Então temos a segunda atitude, ligada com o sambogakaya. As coisas são abertas e espaçosas e trabalháveis como já dissemos, mas há algo mais. Também precisamos nos relacionar com as fagulhas, a energia, os raios e a vivacidade que toma lugar dentro desta abertura. Esta energia, que inclui agressão, paixão, ignorância, orgulho, inveja, e assim por diante, também precisa ser reconhecida. tudo que surge no reino da mente tem que ser aceito como a luz cintilante que brilha através da massiva natureza do caminho espiritual.

Brilha constantemente, nos surpreende constantemente. Há ainda outro canto de nosso ser que é tão vivo, tão enérgico e poderoso. Há descobertas acontecendo o tempo todo. Esta é a forma sambogakaya de se relacionar com o caminho. Assim o caminho contém o sentido mais amplo da total aceitação das coisas como elas são; e o caminho também contém o que poderíamos chamar fascinação com as excitantes descobertas dentro das situações. É válido repetir aqui que não estamos colocando nossas experiências em escaninhos de virtude, religiosos ou mundanos. Estamos apenas nos relacionando com as coisas que acontecem nas situações de nossa vida. Estas
energias e paixões que encontramos em nossa jornada nos apresentam contínuas descobertas de diferentes facetas de nós mesmos, diferentes perfis de nós mesmos. Neste ponto, as coisas se tornam bem interessantes.

Enfim, não somos tão vazios ou achatados como pensávamos que éramos. Então temos um terceiro tipo de relacionamento com o caminho, que está ligado ao nirmanakaya. Este é o aspecto prático básico de existir no mundo. Temos a totalidade, temos as várias energias, e agora temos que funcionar no mundo como ele é, o mundo cotidiano. Este último aspecto requer tremenda atenção e esforço. Não podemos apenas deixar a totalidade e a energia tomarem conta de tudo; temos que colocar alguma disciplina em nosso enfoque das situações da vida. Todas as disciplinas e técnicas descritas nas tradições espirituais estão ligadas a este princípio nirmanakaya de aplicação ao caminho. Há a prática da meditação, há o trabalho intelectual, há o aspecto de aumentar o interesse nos relacionamentos com os outros, desenvolver compaixão fundamental e um sentido de comunicação, também desenvolver conhecimento ou sabedoria que é capaz de olhar numa situação como um todo e perceber as maneiras através das quais as coisas podem ser trabalháveis. Estas são todas disciplinas nirmanakaya.

Colocados em conjunto, os três princípios, ou os três estágios darmakaya, sambogakaya, nirmanakaya nos concedem uma base completa para nossa jornada espiritual. Por causa deles, a jornada e nossa atitude com relação a ela se torna algo trabalhável, algo com que podemos lidar diretamente e de forma inteligente, sem ter que relega-la a uma categoria vaga como o mistério da vida. Em termos de nosso estado psicológico, cada um destes princípios tem outra característica, que devemos mencionar aqui. Enquanto um estado psicológico, o darmakaya é o ser básico. É uma totalidade na qual confusão e ignorância nunca existiram; é existência total que nunca precisa de um ponto de referência. O sambogakaya é aquilo que continuamente contém a energia espontânea, porque nunca depende de nenhum tipo de energia de causa-e-efeito. O nirmanakaya é o contentamento auto-existente em relação ao qual não é necessário nenhum estratagema no lidar com as coisas. Estes são os aspectos psicológicos da natureza de Buda que se desenvolvem.

Louca Sabedoria
Chögyam Trungpa


Tradução por Eduardo Padma Dorje (pdorje@zaz.com.br) e Ana Macedo, em setembro de 2001. Instituto
Caminho do Meio em Porto Alegre/RS (http://bodisatva.org).


Photo: Trikaya, by Frederick Franck, at Pacem In Terris, Warwick, NY