mardi 24 juillet 2018


Cinco questões para Roberto Freire

 CULT - Você afirma que todas as autobiografias são pretensiosas e mentirosas. Acredita que a sua (Eu é um outro conseguiu romper com essa tendência?

 Roberto Freire - Olha, sempre fui radical e muito sincero. Mas como acho que esta é a minha última entrevista, vou ser mais radical e mais sincero: fui levado à tentação da mentira. A minha vontade de contar os fatos que aconteceram, tranquilamente recheados de aventuras, era ficção. Passei por essa tentação e isso me deixou mais horrorizado. Quando escrevi três fases da minha vida e vi que as três não estavam reais (eram sinceras, mas estavam ampliadas e modificadas na realidade], fiquei horrorizado e parei. Depois que descobri um jeito de escrever, de falar sabre a minha vida no trabalho por meio das pessoas com as quais eu convivi, daí eu me policiei completamente. Por isso acredito que as autobiografias são pretensiosas e mentirosas, porque mesmo você querendo não mentir, não se envaidecer, não aumentar o real, é impossível. Duvido de que alguém fale de si mesmo sem demonstrar uma humildade excessiva, ou uma pretensão para se valorizar de algum jeito.

 CULT - A sua obra presenciou uma época em que se acreditava nas mudanças políticas por meio da ação educativa e cultural, que fomentariam as consciências. Atualmente, apesar das sucessivas crises do capitalismo, ocorre o agigantamento da chamada indústria de massa. 0 método cultural vive o seu pior impasse?

 R. F. - O fato cria a ideia. A cultura é formada por ações humanas e não por reflexões humanas. Você reflete sobre o que já aconteceu, ou o que espera que aconteça. No passado, fomos praticamente levados a pensar no social por meio de uma teoria que Marx descobriu. Havia uma carência muito grande em cima disso e uma necessidade de combater a exploração do trabalho. Quem se interessava pelo social e pela política via em Marx a grande proposta de transformação. Eu me lembro de que a juventude, se não conhecia Marx diretamente (pela leitura de “O Capital” e de outros livros), era movida por professores ou por ideias gerais que colocavam os conceitos revolucionários como um padrão de melhora e de renovação. Então, era muito fácil você levantar a juventude, por exemplo, por meio das teorias marxistas e da discussão dos problemas que Marx discutia. Eu trabalhava praticamente só com estudantes. Era impressionante como eles tinham uma certa intuição da necessidade de transformação. O mundo estava passando por um período de transição no campo da psicologia familiar e social também. Sempre as ideias marxistas iam à frente e faziam com que a cultura, a arte e a ciência estivessem mais avançadas no campo socialista. O interessante daquela época é que, por exemplo, os grandes arquitetos e escritores eram marxistas: Niemeyer e Jorge Amado, respectivamente. A crítica que eu e a maior parte dos anarquistas defendíamos é que não se faz uma revolução social por meio do burguês, porque Marx propôs que a vanguarda revolucionária, culturalmente falando, fosse da burguesia, que tomava o poder, depois estabelecia a ditadura do proletariado e oferecia o comunismo aos proletários, isso, para os pensadores anarquistas, era um absurdo! Nós só podíamos acreditar em uma transformação socialista se fosse feita pelo povo.

 CULT - Após trabalhar tantos anos com os jovens (terapias, iniciativas culturais e ativismo político), quais as principais diferenças que você observa nos hábitos da juventude que você conheceu e a de hoje?

 R. F. - Eu praticamente trabalhei só com a juventude de classe média desde os anos 1960. A diferença básica é que o jovem hoje quer se divertir, ele acha que precisa de dinheiro. E para existir dinheiro é preciso o capitalismo. Então eu sinto que eles não tem interesse mais, nem falam em revolução social. Eles aceitaram esse pseudo-social de capitalismo como o bastante Os jovens de classe média vão buscar a sua profissão, se preocupam com a situação social do Brasil e de outros países, mas não militam. São poucos os militantes políticos. Espera-se que, se a economia atingir um determinado nível, a classe média vai ficar bem. E a classe média ficando bem, eles acham que o pais está bem. Mas ninguém está preocupado com o operariado. Só os camponeses. Os próprios operários estão preocupados em subir de operário a mestre, de mestre a capataz. Para chegar de capataz a um estudante universitário. Tudo dentro do mesmo regime. Eu fico horrorizado quando os partidos e sindicatos resolvem fazer grandes encontros no Pacaembu, por exemplo. Eles lotam o estádio, mas o que há de diferente? Por que vai tanta gente? A primeira vez eu fui e fiquei escandalizado: convocam, para uma reunião sobre problemas políticos, shows de cantores, sorteio de carros, geladeiras e casas! Ou seja, colocam no coração do próprio proletário a visão capitalista: solução dos problemas econômicos.

 CULT - Há viabilidade para projetos de autogestão no Brasil?

 R. F. - Sim. É uma ideia econômica de produção. Eu conversei muito com os anarquistas espanhóis, que participaram da Guerra Civil da Espanha. Eles me contaram como era. Autogestão é uma forma de organização para o trabalho sem patrão, em que o capital e a administração são do próprio trabalhador. O capital necessário tem de ser do trabalhador. A hierarquia era baseada na alternância: ninguém podia ser o capataz de ninguém. Se você mostrava mais capacidade para esse tipo de ação, era tornado líder naquele campo. As lideranças eram espontâneas e descartáveis. Todo mundo pode ser líder de alguma coisa. Só que as vezes não se apresentam oportunidades para exercer a liderança que se tem naturalmente. Numa fábrica, por exemplo, organizava-se o funcionamento pelos turnos, em que todo mundo praticava tudo. Aí, iam sendo selecionados os mais aptos para estas ou aquelas funções, e se verificava que a liderança tinha de ser alternada, porque cria o vício da liderança. É uma coisa que também se descobriu naquela época. Se você fica muito tempo liderando numa área, passa a ter a ideia de que não é capaz de fazer as outras funções bem. Então, eram períodos de até três meses com as mesmas lideranças. O lucro ara distribuído pelos trabalhadores por eles mesmos.

 CULT - Você consegue citar um exemplo concretizado de autogestão na área cultural que obteve êxito?

R. F. - A organização eu fiz no teatro. Foi fantástico. A PUC SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) me convidou para criar um grupo teatral no Tuca (Teatro da Universidade Católica) em 1965. Fui e disse que aceitaria se eu pudesse aplicar a minha metodologia anarquista. Perguntaram como que era, e expliquei. E fiz o seguinte: convidei um diretor de teatro (Silnei Siqueira), um cenógrafo (José Armando Ferrara] e um músico. Eu seria o diretor geral. Escolhemos a peça (Morte e Vida Severina) com opiniões de todo mundo, depois apresentamos para os estudantes. Eles leram e aprovaram. Montamos a peça e começamos a distribuir funções. O diretor não era exclusivamente o diretor, todos davam palpites na direção. Ele tinha de coordenar as sugestões. A cenografia partiu do princípio de que era uma peça passada no Nordeste, na caatinga. Daí veio um cara, falou: "Vamos ver essa música". E me deram um nome que já conhecia, um tal carioca, Chico Buarque. Ele mandou umas fitas com a música tão precisa, tão maravilhosa... Eram seis músicas. O pessoal ouviu e não quis mais saber de outras. Eu ia convidar o Tom Jobim. Mas foi só a música que não teve palpite de todos, porque a dele (Chico Buarque) foi ótima.