dimanche 10 janvier 2010

O SUICIDADO PELA SOCIEDADE



Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh para um enigmático e sinistro mais-além.

Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo.

Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de “banquete faustoso” e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo. E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já não o afetará?

Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue.

O céu do quadro é muito baixo, aplastrado, violáceo como as margens do raio.

A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago.

Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baíxo da tela, seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto.

E contudo o quadro é soberbo.

Soberbo, suntuoso e sereno quadro.

Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado, com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre talhado. Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.

É isso o que mais me surpreende em van Gogh, o mais pintor de todos os pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático, suas modestas telas, telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado.

Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada, um livro no sofá e está revelado o drama. Quem vai entrar? Será Gaughin ou algum outro fantasma? A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que parece, a linha de demarcação luminosa que separa as duas individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.

Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin. Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito, enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida.

De minha parte, penso que tinha absoluta razão. Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade. Basta ter o gênio para saber interpretá-la. O que nenhum pintor havia feito antes do pobre van Gogh, o que nenhum pintor voltará a fazer depois dele, pois acredito que desta vez, hoje mesmo, agora, neste mês de fevereiro de 1947, é a própria realidade, o mito da própria realidade, da própria realidade mítica, que está se encamando.

Assim, depois de van Gogh ninguém mais soube mover o grande címbalo, o acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano pelo qual ressoam os objetos da vida real quando se sabe aguçar suficientemente os ouvidos para escutar as ondas da sua maré crescente. Assim ressoa a luz da lamparina, a luz da lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde ressoa como a respiração de um corpo amante na presença de um corpo de enfermo adormecido. Soa como uma estranha critica, um julgamento profundo e surpreendente cuja sentença van Gogh pode nos deixar adivinhar mais tarde, bem mais tarde, no dia em que a luz violeta da cadeira de palha tiver acabado de submergir o quadro.

E não se pode deixar de reparar nessa incisão de luz arroteada que morde as barras da grande cadeira turva, do velho sofá cambaio de palha verde, embora não seja percebida à primeira vista.
Pois o foco de luz está dirigido para outro lugar e sua fonte é estranhamente obscura, como um segredo do qual só van Gogh tivesse conservado a chave.

E se van Gogh não tivesse morrido com trinta e sete anos? Não chamo a Grande Carpideira para me dizer com quantas supremas obras-primas a pintura teria se enriquecido, pois não consigo acreditar que depois dos Corvos van Gogh viesse a pintar mais alguma coisa.

Penso que ele morreu com trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico. Pois não foi por sua própria causa, por causa da doença da sua própria loucura, que van Gogh abandonou a vida.

Foi sob a pressão do espírito maléfico que, dois dias antes da sua morre, passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa direta, eficiente e suficiente da sua morte. Quando releio as canas de van Gogh para seu irmão, convenço-me firmemente que o doutor Gachet, “psiquiatra”, na verdade detestava van Gogh, pintor; e que o detestava como pintor e acima de tudo como gênio.

É quase impossível sr ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta, mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio.

Escritos de um louco
Antonin Artaud