vendredi 16 septembre 2011

Por uma espiritualidade sem Deus



Entrevista com Luc Ferry
Luc Ferry, filósofo, ex-ministro francês da educação, professor da universidade de Paris VII, afirma existir “uma espiritualidade leiga, que constitui o núcleo da filosofia” .
No livro Aprender a Viver, o senhor coloca filosofia e religião como modos opostos de entender o mundo e de se relacionar com a morte. É possível ser filósofo e ter fé ao mesmo tempo?
No meu livro, mostro como filosofia e religião têm fundamentalmente o mesmo objetivo: ajudar os homens a superar os medos – em particular, o medo da morte -, que os impedem de ter acesso a uma vida boa, ou seja, à serenidade e à liberdade. Só que a religião o faz através da fé e de Deus, enquanto a filosofia nos promete que isso é possível através da razão e por nós mesmos. Aí está a verdadeira diferença. É claro, todos nós sabemos que há, apesar de tudo, uma filosofia cristã, uma filosofia judaica, uma filosofia muçulmana. Como se explica? Tomemos o caso do cristianismo: existe uma filosofia cristã ou, se preferirem, um uso da razão no cristianismo por duas razões essenciais: compreender e interpretar, de um lado, os textos sagrados e, de outro, a natureza, que é a obra do criador. Mas quando se toca na questão essencial, ou seja, na questão da salvação, na questão crucial daquilo que nos “salva” dos medos, então a religião fica acima da filosofia, e a fé suplanta a razão. Nas grandes religiões, o status da filosofia é, portanto, sempre secundário, subordinado.
O senhor diz que a filosofia contemporânea conserva o estatuto servil e secundário a que foi submetida com a vitória do cristianismo sobre o pensamento grego. Qual deveria ser hoje o papel da filosofia?
Sim, é verdade. No cristianismo, como eu disse, a filosofia passa a ser secundária. Torna-se, como se dizia na Idade Média, uma “escolástica”, uma disciplina escolar, cujo principal papel acaba reduzido à análise das grandes noções abstratas: a verdade, a justiça, o belo, a substância, o acidente etc. Perde todo o vínculo que tinha, na Grécia, com a questão crucial da vida boa. Ora, penso que, hoje, a questão essencial é justamente esta: os homens sempre precisam livrar-se dos medos que os afligem para finalmente se tornarem livres, abertos aos outros, capazes de agir e de amar em vez de ficarem imobilizados por angústias e egoísmos. Em outras palavras, se não temos uma crença, precisamos de uma sabedoria leiga, de uma espiritualidade sem Deus, e é o que a filosofia deve nos dar. Como, por exemplo, viver o luto de um ser amado? Não é porque não se tem uma crença que essa questão não vai surgir, e a filosofia, neste caso assim como em outros, nos ajuda a pensar e a viver.
Como o senhor se definiria em relação à religião, ateu ou agnóstico? Quais as implicações morais de uma ou outra opção em relação à fé?
Não sou crente, mas tenho o maior respeito por aqueles que têm fé e nunca tento desviá-los dela. É por isso que sempre me defini mais como agnóstico do que como ateu. Aliás, assim como não se pode demonstrar a existência de Deus, também não se pode demonstrar sua inexistência! Quanto à moral, sabemos desde o século 18 que ela pode muito bem prescindir da religião. Não se deve de modo algum confundir as duas esferas: a moral está essencialmente ligada à questão do respeito pelo outro. A religião está voltada para outras questões: como viver, como enfrentar a morte, qual sentido dar à morte de um ser amado, para que envelhecer, o que fazer com o sofrimento etc. Todas essas questões não são morais; elas pertencem a uma outra esfera, a da espiritualidade. Nesse livro, todo meu propósito é dizer que existe também uma espiritualidade leiga, não religiosa, que constitui o núcleo da filosofia.
O que o senhor responderia aos que dizem que as grandes massas sem acesso à educação precisam da religião para sobreviver?
Em primeiro lugar, eu diria que isso está errado, pois há belas morais leigas e, em segundo, que esse uso utilitarista da religião é a sua mais certa negação. É como dar razão de saída a Marx quando ele diz que a religião é “o ópio do povo”.
Em uma época em que os grandes conflitos permanecem ligados ao fundamentalismo religioso, o que a filosofia tem a ensinar à religião?
É verdade que todas as guerras de hoje ainda são de origem religiosa: é o caso tanto nos Bálcãs quanto no Sudão, na Irlanda, no Oriente Médio. As comunidades que se afrontam sempre o fazem em nome da religião que as uniu. Desse ponto de vista, o discurso filosófico, que visa o universal e tenta superar o comunitarismo, me parece formidavelmente salutar nos dias de hoje…
Para o senhor, a filosofia pode ser um instrumento para enfrentar as inquietações do dia-a-dia, contando com a razão em vez da fé. Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, questionou nossa capacidade de ter controle absoluto sobre nossas ações. A razão pode ser mais forte do que as idiossincrasias ou fragilidades pessoais?
Freud descobre o inconsciente, essa parte de nós mesmos que nos escapa. Ao mesmo tempo, ele é o arquétipo do pensador racionalista: seu propósito é justamente restituir ao sujeito, na medida do possível, o controle daquilo que lhe escapa. Freud concebia seu trabalho intelectual como fator de emancipação. Ele ainda era, nesse aspecto, um homem do Iluminismo. Ao lado da filosofia e da religião, a psicanálise é o terceiro grande discurso destinado a ajudar os homens a livrarem-se dos medos que entravam sua existência e os impedem de serem livres e felizes ou, pelo menos, serenos e sossegados. Esses três discursos são, na verdade, três grandes concorrentes no que diz respeito à salvação.

O Brasil, como o resto do mundo, tem assistido a um fenômeno de popularização da filosofia, com quadros na TV e livros que tentam aproximar o leitor comum do pensamento dos grandes filósofos. Por que esse interesse?

Não se trata de um interesse novo, mas de uma simples volta ao normal, após um período vanguardista e extremamente elitista de “desconstrução” que afastou o grande público da filosofia. Na Antigüidade, as escolas gregas eram abarrotadas. Os livros de Rousseau ou de Kant eram em seu tempo verdadeiros best-sellers e, mais perto de nós, Sartre tinha um público que se estendia muito além do círculo dos “profissionais” da cultura e da vida intelectual. Os anos 1960 simplesmente romperam essa relação, e como hoje estamos saindo desse período, o contato com o público está sendo reencontrado.

Em breve, no Brasil, o ensino de filosofia passará a ser obrigatório em escolas públicas e privadas. O que o senhor pensa dessa obrigatoriedade?

Penso que isso é muito bom, mas com uma condição: não cometam o erro que cometemos na França de elaborar um puro currículo escolástico de “noções” do gênero: o espaço, o tempo, a verdade, a justiça, a arte, a ciência etc. É um absurdo. No ensino, o que é preciso fazer é ajudar as crianças a descobrir as grandes visões do mundo. É definitivamente necessário orientar o currículo para a história da filosofia. Isso desperta a paixão dos alunos, os enriquece e, ao menos, tem-se a certeza de que eles não estão perdendo tempo. Vocês sabem que, para conseguirmos refletir e pensar por nós mesmos, precisamos primeiramente ter a humildade de pensar pelos outros e graças a eles. Nada é mais belo que as grandes filosofias. São elas que devem ser ensinadas antes de qualquer outra coisa.