A revolta dionisíaca
Em seu último
livro, La
Puissance d’exister
, o senhor evoca diretamente a sua infância através do
prefácio intitulado Autoportrait
à l’enfant
. Esta abordagem serve para mostrar que o homem não esta separado do filosofo, ou é uma forma de estabelecer ainda
mais um elo com seus leitores?
Michel Onfray - Desde o meu primeiro
livro de 1989, Le
Ventre des philosophes
, proponho as raízes autobiográficas das
ideias que são expostas no texto. Nos meus livros mais importantes,
importantes pelo menos para mim, escrevo sempre sobre um momento
existencial por trás da teoria proposta: por exemplo, em função da
minha breve experiência enquanto trabalhador de uma usina, escrevi
Politique
du rebelle,
onde eu desenvolvo uma filosofia anarquista para os dias de hoje; Féeries
anatomiques,
foi escrito a partir do câncer desenvolvido por minha mulher e que
gerou esse livro sobre bioética. Esta é uma forma de mostrar que a
filosofia não cai do «céu das idéias», como afirmam
os idealistas e espiritualistas, dominantes no campo da filosofia,
mas que se eleva da terra, incluindo o corpo e sua interação com a
história.
O senhor afirma que não ha nenhum ressentimento em sua critica a religião. Mas o seu
estilo e as suas palavras não são elas mais ponderadas e brandas no
seu último livro, em comparação com a sua crítica radical e feroz
exposta no Traité
d’athéologie
?
O Traité
d’athéologie é vingativo ou negativo
para aqueles que não aceitam crítica as religiões. Para evitar de
ter que se confrontar aos meus argumentos ou por não saber
contradizer os fatos que apresento, por não saber argumentar contra
as minhas propostas, por não ter como afirmar que eu estou errado
quando exponho a tese da falta de provas do Jesus histórico, ou
sobre a violência que foi a instalação do cristianismo como a
religião de estado, da incompatibilidade radical entre o ensino do
Alcorão e as bases da República, da invenção do genocídio
exposto na Torá, enfim, para evitar o debate, aqueles que me
criticam tentam atacar a minha pessoa; não podendo atacar a
veracidade de meus argumentos, me classificando como rancoroso,
negativo, etc... curiosamente o meu livro Féeries
anatomiques
, igualmente radical e
feroz, não causou esse tipo de reação da parte de meus críticos... Na verdade, basicamente não se falou desse livro. Aparentemente, nos dias de hoje, falar sobre religião da mais Ibope do que discutir bioética.
Como podemos definir
corpo e indivíduo?
O corpo é o que
permanece quando todas as ideologias afundam: ideologia cristã,
estruturalista, marxista... O corpo é irredutível; é aquilo
que ha quando toda fantasia social, político e cultural desaparece.
O indivíduo é, no sentido etimológico, aquilo que não se divide,
quando tudo o mais esta fragmentado. E apartir dessa base que temos
de construir uma ética, uma estética, uma bioética, uma visao
política, etc.
Se a filosofia se
resume a "confissão de um corpo", ela continua a ter a
possibilidade de um discurso universal?
O universal não
existe, há apenas o particular. E possivel imaginar que a Critique
de la raison pure, que tenta investigar a razão humana a
margem da história, consegue dar conta do funcionamento da magia por
um feiticeiro da Nova Guiné? A Déclaration
des droits de l’homme* deve ser considerada importante a partir do ponto de vista de um membro da tribo dos índios Guayaki? A arrogância da filosofia
ocidental anda de mãos dadas com o ensino de uma « religião
universal », mas isso é uma fantasia ... Montaigne, em seus
Essais**
está constantemente no particular, e alcança,
o que parece ser, o mais universal possível; porque dá os detalhes
de uma odisséia da consciência que pode servir para a própria
edificação dessa mesma consciência - para aqueles que se interessam em
fazê-lo.
Da mesma forma, o
senhor defende um relativismo estético, epistemológico. Negando então a figura do intelectual enquanto portador e gerador de valores
universais, como a justiça, a razão ou a verdade. Qual é então o
seu papel enquanto filosofo?
Não existe pensamento
intelectual desvinculado de seu campo histórico – ou seja, de sua
época. Bourdieu nunca acreditou por um segundo que os resultados de
La
Distinction
(La
Distinction. Critique sociale du jugement - é um livro publicado em
1979 por Pierre Bourdieu que se desenvolve a partir de uma teoria
sociológica dos gostos e dos estilos de vida.)
possa se aplicar a uma sociedade se não aquela de seu tempo... O intelectual é apenas
uma engrenagem de uma máquina local, mesmo que esssa engrenagem seja
um suposto saber do homem branco ocidental judaico-cristão...
Esse relativismo,
que se aplicaria tanto para o belo quanto para o que é verdadeiro,
não desenvolveria, respectivamente, o niilismo na arte e na política?
Seria o oposto! A
promoção de um valor universal que não se sustenta é que leva a
contradições que geram o niilismo; causando assim a ausência
de valores. Gostaria de frizar que ao afirmar essa relativação dos
valores não estou querendo dizer que todos os valores são iguais e
que, portanto, não há verdadeiramente nada que seja valido. Esse
relativismo liga-se aos valores dinâmicos, plásticos, móveis,
vivos: não aos valores fechados, esculpidos em mármore, definitivos. Caso contrário, por que eu teria escrito mais de 30 livros em que
desenvolvo posições hedonistas, utilitaristas, saberes libertários
e pragmáticos, se não para servirem de bases a novos valores e
virtudes?
Sem o
livre-arbítrio, não haveria responsabilidade ética e cívica ;
pelo fato de que não seriamos realmente livre de nossas escolhas.
Como conciliar "imanência e respeito pelos outros" e
"imanência e cidadania"?
Pelas simples normas da
imanência: o contrato, as regras do jogo, o uso da razão, que uma
comunidade tanto precisa; e não por uma «transcendência
republicana», um contrato social como uma religião, a
comunidade como um corpo místico. Somente através da razão e da
inteligência humana é que podemos criar verdadeiros laços
sociais; e não buscando em ficções metafísicas, uma espécie de
filosofia - pelo menos no ocidente - onde a partir da reformulação da
linguagem do idealismo alemão, voltamos aos preceitos da religião
judaico-cristã.
A sociedade moderna
(publicidade, televisão, marketing, etc.) funciona a partir de uma
premissa que define o indivíduo como um sistema nervoso, uma máquina
redutível a certas estruturas neuronais e manipulada a partir de
certos códigos ou estimulantes precisos. Isso seria o inverso da
filosofia da imanência?
Nao o inverso mas a
solução, o problema fundamental: uma Critique
de la raison pure*** não poderia ser
escrita hoje em dia sem levar em consideração as descobertas da
neurociência, da etologia, das ciências cognitivas. A metafísica
ja teve seus dias, ela tem suas limitações; é necessário repensar a metafisica a partir da fisica e parar de pensar o agora com
instrumentos desatualizados que remontam a Platão...
Como evitar as
armadilhas do hedonismo e do consumismo?
Hedonismo não existe
como tal - devemos lhe qualificar para justificar que a sua existência
tenha um sentido próprio; há alguns hédonistas que são meus
inimigos, no caso o hedonismo consumista. Os hedonistas, para
resumir, dividem-se em dois tipos: o hedonismo do ser, e o
hedonismo do ter. O primeiro é o remédio do segundo. O
"hedonismo do ter": o prazer que ha em consumir,
comprar, possuir, se inscrever em uma lógica de acumulação de
objetos, "coisas" para dizer no sentido de um Georges
Perec; e ha o "hedonismo de ser", o prazer de filosofar, o
prazer da construção pessoal e intelectual, o prazer existencial de
se criar uma vida filosófica total e completamente independente do
ter: estar de bem com a vida independente das condições externas da mesma. Não ser um escravo da noção de ter, não ser escravo da noção de propriedade, dos objetos, do dinheiro, do
poder, da honra e status social, que funcionam como símbolos desse
ter. Os inimigos do hedonismo, e existem muitos, dissimulam-se
em meio ao real significado do mesmo, como uma nuvem que esconde o
sol, achando que assim podem impedir o seu brilho. Epicuro, o filósofo
tendo como figura o porco, é uma caricatura tão antigo quanto o
mundo…
*
Inspirada nos pensamentos dos iluministas,
bem como na Revolução
Americana (1776),
a Assembléia
Nacional Constituinte da França
revolucionária aprovou
em 26
de agosto de 1789 e
votou definitivamente a 2
de outubro a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizado em
dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários
e liberais da
primeira fase da Revolução
Francesa (1789-1799)
**
Os Essais são
um autorretrato. O autorretrato de um homem, mais do que o
autorretrato do filósofo. Montaigne apresenta-se-nos em toda a sua
complexidade e variedade humanas. Procura também encontrar em si o
que é singular. Mas ao fazer esse estudo de auto-observação acabou
por observar também o Homem no seu todo. Por isso, não nos é de
espantar que neles ocorram reflexões tanto sobre os temas mais
clássicos e elevados ao lado de pensamentos sobre aflatulência.
Montaigne é assim um livre pensador, é um pensador sobre o Humano,
sobre as suas diversidades e características. E é um pensador que
se dedica aos temas que mais lhe apetecem, vai pensando ao sabor dos
seus interesses e caprichos.
***
A
Crítica
da Razão Pura
(Kritik der reinen Vernunft), publicada inicialmente em 1781 com
uma segunda edição em 1787;
é considerada a obra mais influente e mais lida
do filósofo alemão Immanuel
Kant e
uma das mais influentes e importantes em toda a história
da filosofia ocidental.
Ela é geralmente referida como "primeira crítica" de
Kant, uma vez que essa obra precede a "Crítica
da Razão Prática"
e "Crítica
do Julgamento".
Tradução: Ricardo Castro
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