mercredi 10 juin 2009

A BARCA






I

No início era o Vazio.
Que repousava sobre si mesmo
Acariciando toda Sua existência.
Através de uma esfera de Luz.
E esse sem forma que tudo abarca
Inspirou a existência à vir a ser.
E dançando sobre o Nada
Criou a Forma a partir de si.
E dividiu-a em duas partes
Iguais, contrárias, complementares
E ilusórias.
E esse Dois se partiu em mil.
E formou toda capa externa e impermanente
Também chamada de espaço.
E desse espaço infinito
Brotou a matéria e a consciência.
Que guiada pelo tempo
Viaja numa jornada de volta
Para casa.


II

Uma dessas sementes brotou
Num cantinho desse todo.
Germinou no solo dessa Terra
Azul.
E se dividiu em muitos.
A partir do fogo
Da água
Do ar e dessa própria terra.
Numa era de ouro.
No inicio da jornada de volta.
Onde o Certo era tão obvio
Quanto a luz.
Onde o Caminho era tão reto
Quanto o circulo.
Onde a gazela e o leão
Eram um só.
Onde o Bem não necessitava
De motivo algum para sê-lo.
Onde Tudo estava presente
Pois não havia nada
Que se pudesse fazer.
Mas esse espaço
Continuou a se mover
Guiado pelo tempo.


III

E essa Dança divina
Tomou consciência de sua nova forma.
E maravilhou-se em si mesma.
E mergulhou tão fundo
Em sua própria imagem
Que se esqueceu
De sua origem.
E se pensou única e bela.
E adormeceu
Achando que havia acordado
De um sonho infantil.
Precisou agir
Pois não se bastava.
Precisou criar
Pois não mais se continha.
Precisou comer, beber e dormir
Porque se esquecera
de que era feita de luz.


IV

E do esquecimento
Veio a dor.
E da dor, o medo.
E do medo, as trevas
Da ignorância.
De não se reconhecer.
E a divina dança
Se transformou numa marcha
Faminta de sangue.
Faminta de si mesma
Faminta de sua própria luz.
E essa marcha se espalhou
Pela esfera.
Onde agora o leão
Não mais reconhecia a gazela
Como sua mãe e irmã.
Pois agora o tempo
Era alimentado pela força bruta
Da matéria.
Que se auto abastecia
E se autoregorgitava
Num balé de terror divino.


V

E cada forma seguia
Fazendo sempre
O que sempre fez
Imaginando estar fazendo algo diferente.
Presa num círculo de fogo.
Circulando sem rumo
Entre as quatro estações.
Até que os céus
Atenderam aos chamados da terra
Azul.
E gotejaram luzes de Cor
Que estremeceram a face
Refletida no lago.
E acordaram
O dançarino Divino
Que habita todos os seres.
E despertaram
O Vazio de Luz
Contido nas sementes
Adormecidas


VI

E as sementes
Recordaram
Que eram filhas da luz
E desabrocharam
Em folha, fruto e som.
E uma grande nota musical
Se espalhou e regou toda terra
Azul.
E toda disputa
Perdeu o sentido.
E toda marcha
Passou a ter cor.
E toda dança novamente
retomou consciência
De que era uma
Em muitas


VII

E essa dança
Alimentou a dor
E desfez a ilusão
das trevas.

“Pois meus sonhos
Não são nada.
Assim como meus pesadelos
Também não são nada.
Assim como a alegria
Não é nada.
Assim como a dor
Não é nada.
Para que então
Tudo
Não se torne
Nada.”

A BARCA - Ricardo Castro 1998