Lembranças de Ajahn Chah
Ajahn Chah possuia quatro níveis básicos de ensinamentos, e cada um, embora às vezes muito difícil para os estudantes, eram apresentado com muitas doses de humor e compaixão. Ele dizia que a prática desenvolve-se verdadeiramente apenas se conseguirmos ligar o nosso interior ao nosso exterior. E esta dignidade, essa Verdade, base da prática, emerge graças ao abandono de conceitos erroneos, e à uma disciplina impecavel.
No ocidente, compreendemos a liberdade como algo que significa «liberdade de se fazer o que se deseja » ; mas eu penso que a gente pode perceber que não ha liberdade alguma ao seguir os caprichos de nossos desejos. Na verdade, esse tipo de pseudo liberdade é nada mais nada menos do que uma prisao – uma espécie de gaiola de ouro. Por outro lado, uma liberdade mais profunda, ensinada através do Dhamma, é a liberdade que vai além da forma: a liberdade que a gente pode descobrir ao desenvolver uma relação verdadeira com os outro, a liberdade de ter nascido num corpo com as suas limitações, a liberdade de apenas estar « ali ».
Ajahn Chah, basicamente, desenvolvia uma situação onde dignidade, respeito e precissão estavam presentes. Exigia realmente muito das pessoas. Provavelmente muito mais do que que elas haviam experimentado em toda a sua vida. Buscava desenvolver em nos o « saber compartilhar », o « estar atento » e o « ser inteiro ». Às vezes, a prática era maravilhosa: tudo ficava tão claro e fresco como as primeiras impressões de mundo em nossa infância; mas às vezes tudo era muito difícil. Ele dizia então: "Isso não é um problema. A questão é conseguir desenvolver, alcançar e estabilizar a nossa paz de espirito".
Meditavamos durante longas horas numa sala cujo o chão era de pedras. E utilizavamos como almofada de meditação um pedaço de pano que colocavamos sobre o solo. Recordo-me que no início, quando então para mim a pratica era muito dolorosa, eu costumava ser um dos primeiros a chegar para escolher um lugar proximo de uma pilastra - para eu poder me encostar. Depois de uma semana, numa noite, Ajahn Chah, após a meditação, começou a falar sobre como a verdadeira prática do Dhamma deve ser: independente de todas as circunstâncias, independente da necessidade de se apoiar sobre o que quer que seja. E então olhou-me...
Às vezes, durante a nossa pratica ele poderia receber algum convidado ou dar alguma longa entrevista; e nos não podiamos parar a pratica. Ficavamos la pensando: « Ele não sabe que estamos sentados aqui ha horas? Não imagina que alguns de nos podem estar com sede e outros necessitando de esticar as pernas ? ». E claro que ele sabia o que estavamos pensando mas continuava a fazer o que estava fazendo. E a gente continuava la sentado percebendo os nossos jogos mentais.
A capacidade de resistência dos monges que vivem nas florestas é de extrema importância. Pois para Ajahn Chah essas « dificuldades » eram completamente normais. Ele não se preocupava com o fato das pessoas provarem essas dificuldades. Normalmente ele chegava perto da gente e perguntava: "Você esta em cólera? De quem é o problema: meu ou seu? ». Logo, ficava claro que era necessario realmente mergulhar no dhamma, não para fazer bonito, ou fazer algo correto, ou para impressionar Ajahn Chah, mas para nós mesmos.
E a partir dai a gente começava a aprender a realmente se abrir e a ver claramente o que se passava – dentro e fora de nós. Era essencial, na nossa prática, ser verdadeiro para conosco e para com o mundo, não importa em que situação estivessemos. Sentado debaixo de seu kutî e cercado de diversos visitantes laicos e de discípulos que vinham visita-lo frequentemente - alguns monges riam e contavam historias engraçadas - ele dizia:" Queria apresentar a vocês meus monges. Este gosta de dormir muito. Aquele la, fica doente o tempo todo, ele utiliza isso como seu pequeno truque; ele passa o seu tempo a se lamentar disso. Este outro é um gordo comedor; come mais que dois ou três monges reunidos. Aquele ali gosta muito dos questionamentos, ele realmente gosta disso. Gosta tanto de duvidar de tudo que acaba se perdendo em suas duvidas. E, imaginem, tinha três mulheres ao mesmo tempo! Este aqui gosta de méditar durante muito, muito tempo; em qualquer situação que se apresente ele deseja ir meditar - eu acho que ele tem medo das pessoas... »
Continuava apresentando todos, de uma maneira muito engraçada, mas ao mesmo tempo sendo profundamente honesto. Podia verdadeiramente levar as pessoas à perceber a sua propria personalidade e as suas proprias fixações. Quando eu estava fazendo as traduções para os ocidentais presentes, ele dizia: "Embora eu não conheça o inglês, sei perfeitamente que o meu tradutor deixa lado todas as coisas realmente duras que eu digo. Contorna os pontos dolorosas e deixa de lado o que pode vir a feri-los, ele então torna as minhas palavras agradáveis para vocês. Não podemos confiar muito nele ».
Em primeiro plano temos a dignidade de simplesmente estar onde estivermos e o abandono de qualquer tipo de expectativas: perceber verdadeiramente o nosso momento e viver completamente o Dhamma. Em seguida é necessário aprender a ver honestamente o mundo de fenomenos, a ser realmente honesto para com a gente e para com as pessoas que nos cercam; perceber os limites mas ao mesmo tempo não ser prisioneiro das situações externas.
Quando perguntavam: « Qual é mais o maior problema com os novos discípulos ? » ele respondia: "Os prejulgamentos, as opiniões ja formadas a respeito de tudo. Normalmente são pessoas muito cultas. E em função dessa erudição elas obviamente conhecem muitas coisas. E em função dessa carrocça muito pessada de conceitos e idéais como podem aprender algo novo? Mas cabe somente a eles como observar a propria sabedoria e desenvolve-la. Podem me tomar de exemplo, mas estejam realmente atentos a sua propria prática. Se por acaso, vocês acham que eu estou descançando enquanto que todos estão sentados em meditação, isso provoca a sua cólera? Ou se digo que o céu é vermelho em vez de azul, não me sigam cegamente. Um dos meus mestres comia muito rapidamente e fazendo barulho. Contudo, dizia para que comessemos lenta e cuidadosamente. Eu o observava o tempo todo e ficava muito incomodado com aquilo. Sofria bastanta com o que eu achava ser os erros de meu mestre. Mas ele não! Pois eu via somente o que podia ver – percebia somente o exterior. Mais tarde eu finalmente entendi. Como por exemplo, podemos usar uma metafora automobilistica: alguns dirigem muito rapidamente, mas prudentemente, e outros conduzem lentamente mas sofrem muitos acidentes - devido a falta de atenção. Não fiquem presos às regras ou àquilo que somente os olhos estão percebendo. Perceber em primeiro lugar o proprio umbigo é a prática correcta! No início, eu passava todo o tempo observando o meu mestre, Ajahn Tongrath, e tinha muitas dúvidas em funçao daquilo que eu achava ser os erros no seu comportamento. Algumas pessoas pensavam mesmo que ele era louco. Pois ele fazia coisas estranhas e era extremamente severo para com os seus discípulos. Aparentemente, estava em cólera mas internamente não havia nada. Era notável. E viveu assim até o momento da sua morte. Julgando, comparando, discriminando… não encontraremos a felicidade desta maneira. De maneira alguma você encontrará a paz se passar todo o tempo procurando externamente o homem perfeito, a mulher perfeita ou o mestre perfeito. »
Jack Kornfield http://www.vipassana.fr/
http://www.buddhaline.net
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