samedi 15 septembre 2007

A Saúde Mental na Psicologia Budista Clássica


A Saúde Mental na Psicologia Budista Clássica

Daniel Goleman – Beyond Ego, Transpersonal Dimensions in Psychology

Na Abhidhamma, a psicologia budista clássica, os fatores que compõem os estados mentais das pessoas de momento à momento determinam a saúde mental de cada um. A relação de fatores saudáveis representa um modelo transpessoal de saúde mental, um vislumbre do que se abre à pessoal saudável que transcende os limites de nossas atuais noções psicológicas de saúde.

Fatores Insalubres

O modelo do Abhidhamma de saúde mental reconhece realísticamente toda uma gama de atitudes negativas, insalubres, que estorvam o desenvolvimento psicológico saudável. Dentre os quatro fatores insalubres básicos o principal elemento perceptual é a delusão, um obscurecimento perceptivo que leva à percepção errônea do objeto apreendido. A delusão é considerada a fonte fundamental de estados mentais insalubres; ela leva diretamente a um fator cognitivo, a “visão falsa” ou discernimento errôneo, embora o seu papel em outros fatores insalubres sejam menos indiretos. A visão falsa envolve o erro de categorização, sendo por isso a consequência natural da percepção errônea. Entre os outos fatores cognitivos insalubres, estão: a ausência de vergonha e de remorso – atitudes que permitem a consideração de atos malévolos sem compunção, desconsiderando tantos as opiniões dos outros como os padrões internalizados – e o egoísmo, uma atitude de auto-interesse em que os objetos são vistos apenas em satisfação dos próprios desejos ou necessidades. A perplexidade é a incapacidade de decidir ou de formar um juizo correto.

Os mais importantes fatores mentais insalubres são os afetivos. A agitação e a preocupação – componentes da ansiedade – são dois fatores essenciais dessa categoria. A avidez, a avareza e a inveja formam um conjunto caracterizado pelo forte apego a um objeto: a aversão é o pólo negativo do continuum do apego. A contração e o topor contribuem para os estados mentais insalubres com a inflexibilidade rígida e incapaz de adaptação e com a inação moribunda.

Esses fatores insalubres se opõem à um conjunto de quatro fatores sempre presentes nos estados saudáveis. O princípio essencial da saúde mental no Abhidhamma é a inibição dos fatores mentais insalubres pelos fatores saudáveis respectivos. Tal como ocorre numa dessensibilização sistemática – em que a tensão é superada pelo seu oposto biológico, o relaxamento. Os estados mentais saudáveis são antagonistas dos insalubres e os inibem. Nesse sistema, a presença de um dado fator saudável impede o surgimento de um fator insalubre específico, ou de um grupo de fatores, embora nem sempre numa base um-para-um. Os fatores saudáveis e insalubres da tabela abaixo estão em oposição geral e não em oposição específica. Explicações mais elaboradas podem ser encontradas em Guenther (1974) e Narada Thera (1956).

Fatores mentais primários na psicologia budista clássica

a) perceptuais cognitivos

Fatores insalubres: delusão, visão falsa, ausência de vergonha, ausência de remorso, egoísmo, perplexidade.

Fatores saudáveis: discernimento, atenção, modéstia, discrição, confiança, retidão

b) afetivos

Fatores insalubres: agitação, avidez, aversão, inveja, avareza, preocupação, restrição, topor.

Fatores saudáveis: compostura, desapego, não-aversão, imparcialidade, vivacidade, flexibilidade, eficiência, proficiência.

Fatores Saudáveis

O principal fator saudável, o discernimento ou entendimento – “percepção clara do objeto tal como é de fato” – imprime o fator insalubre fundamental de delusão. Esses dois fatores não podem coexistir num único estado mental: onde está o discernimento, não há delusão. A atenção nos estados mentais saudáveis permite a contínua compreensão clara de um objeto, sendo o corolário essencial da sabedoria. O discernimento e a atenção são os fatores saudáveis fundamentais; quando estão presentes, os outros fatores saudáveis tendem a surgir.

Os fatores cognitivos geminados, a modéstia e a discrição, só se manifestam quando um estado mental saudável tem como objeto um ato malévolo; funcionam para inibir o cometimento desse ato e, assim, compõe-se diretamente a ausência de vergonha e de remorso. Esses fatores são sustentados pela retidão, um fator cognitivo mais geral de correção nos juízos. Um fator afetivo associado é a confiança, uma certeza baseada numa percepção ou num conhecimento corretos. O desapego, a não-aversão e a imparcialidade, opõem-se, em conjunto, ao agregado de fatores insalubres formados pela avidez, avareza, inveja e aversão, substituindo por uma serenidade com relação à todo objeto que possa vir a ser percebido. O fator da compostura reflete a tonalidade emocional, calma e tranquila que vem do apazigamento de fortes emoções cognitivas e ativas de apego. Um último grupo afetivo de fatores influencia a mente e o corpo: a vivacidade, a flexibilidade, a eficiência e a proficiência, que suplantam, juntas, a contração e o torpor, fornecendo atributos de maleabilidade, facilidade, adaptabilidade e habilidade a configuração da saúde mental. Esses fatores saudáveis nucleares, além de superarem os insalubres, compõem o fundamento de um conjunto de estados afetivos positivos que não podem se manifestar na presença de fatores insalubres. Esse conjunto inclui a equanimidade, a compaixão, a delicadeza amorosa e a alegria altruísta, isto é, uma alegria que surge quando a felicidade do outro chega à percepção.

Os fatores insalubres e saudáveis tendem a se manifestar em grupo, mas todo o estado mental que tenha um único fator insalubre é visto como totalmente insalubre. Na verdade, nesse sistema, a definição operacional de desordem mental é a presença de algum fator insalubre na economia psíquica da pessoa. Assim, a saúde mental é a ausência de fatores insalubres e a presença de fatores saudáveis nos estados mentais da pessoa. Por esse critério, é provável que sejamos todos “doentes”. Ainda assim, cada um de nós provavelmente experimenta, por períodos maiores ou menores, estados mentais totalmente “saudáveis”, à medida que momentos mentais entram e saem da nossa corrente de consciência. Mas há um número diminuto de pessoas que só experimentam estados mentais saudáveis, sendo precisamente esse o objetivo do desenvolvimento psicológico na Abhidhamma.

O Arahat como protótipo

Do ponto de vista da Abhidhamma, o arahat ou o homem ideal, personifica a essência da saúde mental. O arahat é um ser em cuja a mente não surgem fatores insalubres. Da nossa perspectiva, pode ser visto como alguém que atingiu uma condição alterada de consciência por meio da qual certos processos de conciência são alterados de maneira duradoura. São inúmeros os coralários de personalidade e comportamentais dessa mudança na economia psicológica do arahat. Uma enumeração parcial dessa relação tradicional inclui:

1) Ausência de: avidez, ansiedade, ressentimentos e temores de toda espécie; dogmatismos, como a crença de que isso ou aquilo constituem “a Verdade”; aversões e condições como a perda, a desgraça, a dor ou a culpa; sentimentos de luxúria ou de ódio; experiência de sofrimento; necessidade de aprovação; deleite com elogios; desejo para si de qualquer coisa além do necessário e essencial.

2) Prevalência de: imparcialidade com relação aos outros e equanimidade em todas as circunstâncias; atenção permanente e calmo deleite com a experiência, por mais ordinária ou mesmo entediante que seja; forte sentimento de compaixão e de gentileza amorosa; percepção rápida e precisa; compostura e habilidade de ação.

Embora possa parecer incrivelmente virtuoso da perspectiva ocidental, o arahat personifica características comuns à maioria das psicologias asiáticas: é o protótipo do santo. Na nossas psicologias contemporâneas, esse protótipo se destaca principalmente pela ausência. Uma transformação tão radical do ser ultrapassa em muito os objetivos e esperanças das nossas psicoterapias e, de fato, está além de virtualmente toda a teoria moderna da personalidade. Do ponto de vista da psicologia ocidental o arahat pareçe bom demais para existir; faltam-lhe muitas características que consideramos intrínsecas à natureza humana. Mesmo assim, o protótipo do santo é uma das principais bases das psicologias asiáticas, que vêm florescendo há dois ou três milênios.