mercredi 1 août 2007

Fabrice Midal - A disciplina


Catherine Barry: Bom dia à todos. Como podemos aplicar no nosso dia-a-dia os ensinamentos do budismo? Porque e como procurar o budismo? Qual é o papel do compromisso, da motivação e da disciplina nessa busca? E como essa disciplina, dentro do budismo, pode se misturar ao nosso cotidiano? Conversaremos sobre todas essas questões com Fabrice Midal. Bom dia Fabrice.

Fabrice Midal: Bom dia.

CB: Você é um praticante do Vajrayana ha muitos anos além de ser doutor em filosofia, escritor, escreveu varios livros que são referencia para os que estudam o budismo, e você é também professor na associação Prajna e Philia, associação que estuda as relações entre os ensinamentos budistas e o ocidente, tudo isso entre outros trabalhos que você exerce. Mas enfim, com podemos definir um engajamento real dentro do budismo? Poderíamos dizer que esse engajamento se difere de uma busca espiritual dentro de uma religião monoteísta, por exemplo?

FM: Essa é a grande questão. Pois existem todos os ensinamentos, todos os textos... mas como passar tudo isso para o dia-a-dia? A disciplina é o verdadeiro engajamento. Ela tem uma importância fundamental. Mas o primeiro ponto nessa busca dentro do budismo é deixar bem claro para nos mesmos: o que realmente estamos buscando? E quando percebemos realmente o que nos move rumo a esse caminho, quando desejamos realmente exercitar uma transformação em nos mesmo, quando desejamos realmente desenvolver o nosso coração, quando entramos em contato com uma certa abertura real para que tudo isso venha a se realizar, então podemos ir a diante.

CB: Então, poderíamos dizer que a verdadeira motivação é a base do caminho dentro do budismo?

FM: Antes de mais nada é importante definir: o que é essa motivação? E perceber realmente o que nos queremos com isso tudo. Pois podemos dizer que a motivação serve para que percebamos o que é necessário frente a uma determinada situação e ao mesmo tempo perceber o que ha de mais verdadeiro que podemos encontrar em nos mesmos - em termos de resposta à essa situação. Perceber, enfim, o que é realmente verdadeiro dentro de nos mesmos.

CB: Então temos um verdadeiro engajamento que estaria ligado intimamente com a noção de disciplina. Mas no ocidente essa relação é muito confusa, pois normalmente tendemos a confundir disciplina com autoritarismo.

FM: Muito bem colocado. Pois no ocidente a palavra disciplina nos causa um certo desconforto pois nos vem a mente que "devemos" fazer isso ou aquilo para sermos considerados boas pessoas. Contudo, a disciplina é entrar em contato com essa nossa verdadeira aspiração e a partir disso, estabelecer de forma precisa, clara e direta esse contato; desenvolver a clareza necessária para que cada pequena coisa que venhamos a fazer seja realmente aquilo que estejamos fazendo. Logo, a disciplina dentro do budismo não tem nada a ver com obedecer a uma regra externa, mas ao contrario, é tentar estabelecer um contato direto com a nossa verdadeira natureza.

CB: Mas então isso quer dizer que para desenvolver nesse nível o senso de disciplina devemos ter um mestre... pois no inicio fica difícil por si mesmo entrar em contato com tudo isso.

FM. Eu acho que a questão do mestre é sim importante, entretanto, mesmo se não tenhamos ainda um mestre, ou um amigo espiritual, nos podemos desenvolver uma certa disciplina na nossa vida.

CB: Você poderia nos dar um exemplo de como fazer isso?

FM: No budismo, a noção de disciplina divide-se em três: do corpo, da fala e da mente. E importante deixar isso claro. Pois temos a tendência de imaginar a disciplina como alguma coisa meio abstrata ou coerciva. Então se faz necessário que esse nosso engajamento passe por esses três fatores. No caso do corpo, podemos dizer que a maneira como nos relacionamos com o nosso corpo reflete, ou não, esse senso de disciplina. Por exemplo: como é que nos movemos? De forma consciente, ordenada, brusca, esbarrando em tudo a nossa volta...

CB: O tipo de alimento que ingerimos?

FM: Sim, claro... de uma forma geral as pessoas acham que isso não tem muita importância; pois o que valeria verdadeiramente dentro de um caminho espiritual seria ter profundos insights, grandes revelações, etc... Mas no budismo o mais importante é perceber realmente o que esta se passando conosco quando se passa qualquer coisa! Que reações nos vem quando se passa isso ou aquilo, como reagimos frente ao nosso cotidiano... Normalmente, quando temos a oportunidade de conhecer um grande mestre budista - seja qual for a sua tradição - o que mais se destaca nele é a sua postura como um todo. O seu Ser. Como normalmente esse mestre estará realmente presente ali na sua frente. Atento a cada detalhe que o cerca.

CB: Ou seja, um grande mestre estará completamente presente a cada momento que ele vive.

FM: Exatamente. Por outro lado, nos também temos contato com pessoas que proferem discursos grandiosos sobre as grandes verdades budistas mas que no seu dia-a-dia não são capazes de ter uma boa postura; nao são capazes de preparar um chá de forma correta ou de se preocupar com os outros de forma desinteressada. Quem sempre enfatiza essa questão é o Dalai Lama. Ai temos o segundo ponto da disciplina - a fala: qual é a relação que nos estabelecemos com as pessoas, conhecidas ou não? A partir do medo, da desconfiança, da expectativa? De que maneira nos damos um simples "bom dia" às pessoas que nos cercam, conhecidas ou não? Como é que nos conectamos com o espaço que nos cerca: tendemos a ser "espaçosos" ou tendemos a ser "acolhedores"? Espaçosos, por quê? Acolhedores, por quê? Indo à diante, no terceiro ponto, a mente, investigamos: de que maneira nos relacionamos com os nossos humores? Somos muito reativos? Temos uma gama de "respostas" na ponta da língua? Somos muito irônicos? Quando alguém discorda de nos qual é a nossa primeira reação? E importante perceber quando nos consideramos agredidos e perceber como esse processo se da. E isso a disciplina. Deixar de lado a ideia de se esconder atras de um muro de idéias e ideais e estabelecer uma relação verdadeira e franca com o mundo de nos cerca. Sair do casulo aconchegante do "o meu mundo é o certo" e dizer "bom dia" ao verdadeiro mundo.

CB: Seria então sair desse habitual egocentrismo. Trabalhando o corpo, a fala e a mente de uma forma global. Perceber a interdependência de todas as coisas. Pois não podemos trabalhar uma delas, o "espirito", sem trabalhar o corpo, ou a fala, por exemplo. E a partir da disciplina, dessa atenção plena, dessa concentração, faríamos tudo isso...

FM: Exato. No ocidente, talvez um grande empecilho na compreensão do budismo é a nossa tendencia a separar o mundo "material" e o mundo "espiritual", dentro do budismo isso não tem sentido.

CB: Talvez para nenhuma via espiritual...

FM: Sim, mas particularmente para o budismo que não foi influenciado pelo platonismo, onde não ha distinção entre o mundo "daqui" e o mundo "de la", entre o corpo e o "espirito". Ao contrario, dentro do budismo tenta-se perceber os dois como se fossem uma unica coisa. E nesse ponto que a disciplina é extremamente importante como uma forma de se fazer atenção a cada detalhe de nossa vida.

CB: Então a disciplina também seria se engajar numa pratica meditativa diária, cotidiana...?

FM: Sim. E extremamente importante desenvolver a disciplina de praticar a meditação todo os dias. Pois é a partir dai que nos entramos cada vez mais num estado onde não estamos manipulando nada, estamos somente "ali". Ao mesmo tempo, podemos abranger essa atenção plena em nossa vida como um todo. Perceber o que se passa, sem se distrair com o que vamos fazer ou o que ja fizemos, exercitar isso quando tomamos banho, quando falamos com alguém... enfim, a cada momento de nossa vida temos a grande oportunidade de desenvolver esse real engajamento. E nesse caso, a disciplina nos ajudara a simplesmente a celebrar esse "aqui e agora".

CB: Então a disciplina seria uma espécie de grande passo rumo a uma verdadeira liberdade?

FM: Exatamente. E claro, no nosso mundo nos "resistimos" a uma ideia de disciplina, pois a gente deseja fazer tudo o que a gente quer de forma cega e achamos que todas as regras que vão ao encontro disso tolheriam a nossa liberdade. Mas na verdade nos não somos de forma alguma "livres".

CB: Nem felizes...

FM: Não somos nem livres e nem verdadeiramente felizes. Pois estamos a cada momento acorrentados por todo os tipos de emoções e todos os tipos de desejos, por vezes contraditórios, que passam pela nossa cabeça.

CB: Podemos lembrar então que a ânsia, esse grande desejo, é um dos principais fatores que nos mantem presos...

FM: Sim. E podemos distinguir, um desejo egocêntrico flutuante, de um outro desejo, que nos falamos ha pouco, um verdadeiro desejo, uma aspiração... pois é importante deixar claro que o objetivo de Buda não é transformar ninguém em legumes, e sim, estabelecer o contato com essa verdadeira aspiração. E é isso que a disciplina pode desenvolver. Ela pode fecundar o contato com essa nossa verdadeira aspiração. E a isso se liga a diferença entre a liberdade de se fazer tudo o que se passa pela cabeça, da verdadeira liberdade, de se fazer o que se deve fazer ao se estar completamente consciente frente a qualquer tipo de situação.

CB: Isso nos leva ao nosso senso de responsabilidade. Pois ele se entrelaça a disciplina e ao real engajamento dentro do budismo.

FM: A gente não pode ser verdadeiramente livre, disciplinado, ou realmente engajado se a gente não estabelece uma relação real, direta, aberta e verdadeira com o que quer que nos cerque. Isso é o verdadeiro senso de responsabilidade. Nos somos responsáveis frente a todos os que nos cercam e a disciplina é deixar de lado a ideia de que o mundo deveria ser aquilo que a gente gostaria que ele fosse. Os problemas e as dificuldades sempre estarão presentes... mas a gente,
através da disciplina, pode ver tudo isso como uma maneira a mais para nos exercitar.

CB: Podemos então dizer que não ha espaço para se separar a disciplina na vida espiritual da vida do dia-a-dia...

FM: Novamente, cada pequeno detalhe do nosso dia-a-dia pode ser uma maneira de exercitar em nos mesmo o que nos somos realmente.

CB: E claro, é necessário desenvolver a paciência para se chegar a um bom nível de disciplina e assim ir cada ver mais adiante...

FM: Você tem razão. Esse é um ponto importante. E necessário uma construção que se faz aos poucos através de uma verdadeira pratica. Mas ao mesmo tempo é necessário desenvolver, de uma forma amorosa para consigo mesmo, o desenrolar desse senso de disciplina a cada instante. Logo, é necessário uma grande dose de paciência para consigo mesmo. Por exemplo, quando falamos sobre a disciplina temos uma série de resistências que se criam. Investiguemos isso e puxemos tudo isso para o nosso campo de estudo. Por que dessas resistências? O que elas significam realmente? Percebamos tudo isso e utilizemos todo esse material para desenvolver essa disciplina.

CB: Seria o nosso "ego" se rebelando...

FM: Seria o ego se rebelando, é o medo que se manifesta... é extremamente difícil "se deixar de lado". E a partir da disciplina desenvolvemos esse "se deixar de lado", que é importante para que as coisas verdadeiras comecem a vir-a-tona.

CB: Podemos dizer que nos aceitando plenamente aceitaremos plenamente os outros... o que não quer dizer, é claro, ser passivo em relação as circunstâncias.

FM: Isso... toda disciplina que não é fruto dessa suavidade de base é uma espécie de violência - para conosco mesmo ou para com aqueles que nos cercam. E disciplina é simplesmente uma precisão oriunda de uma exatidão de espirito. Pois se existe essa confiança - fruto desse verdadeiro contato para conosco e para com o mundo fenomenal que nos cerca - existe essa disciplina. E se existe essa disciplina existe esse real contato. Ela vai se propagar nos dois sentidos.

CB: Então, a disciplina não seria nada castrativo, pesado, ao contrario, ela geraria muito entusiasmo...

FM: Sim, mas sem essa disciplina a gente pode ter um grande conhecimento sobre muitos assuntos, se considerar um grande professor de qualquer coisa, mas o essencial ficara sempre à parte. E logo, tudo isso nao servira à nada.

CB: Fabrice Midal, muito obrigado.

Catherine Barry é budista, jornalista, escritora e apresenta o programa de televisão "La Voix Bouddhiste", todo domingo no canal France 2, da televisão francesa. 

Entrevista traduzida para o português por Ricardo Castro