mardi 5 avril 2011

DA VIOLÊNCIA




Nada, em minha opinião, poderia ser teoricamente mais perigoso do que a tradição do pensamento orgânico na política de acordo com o qual o poder e a violência são interpretados em termos biológicos. Conforme são compreendidos esses termos hoje em dia, a vida e a sua suposta criatividade são o seu denominador comum, e assim a violência é justificada em termos de criatividade. As metáforas orgânicas as quais fermearam toda a nossa discussão acerca de questões políticas, especialmente das manifestações políticas – a noção de “uma sociedade enferma”, da qual as manifestações são um sintoma, da mesma forma que a febre é sintoma de uma infecção – irão apenas promover a violência no final das contas.

Assim, o debate entre aqueles que propõem meios violentos para restaurar “a lei e a ordem” e aqueles que propõem reformas não-violentas começa a parecer, ameaçadoramente, como uma discussão entre dois médicos que debatem as vantagens relativas do tratamento cirúrgico, sobre o tratamento clínico do paciente. Quanto mais doente estiver o paciente, maior a probabilidade de que o cirurgião tenha a última palavra. Ademais, enquanto falarmos em termos não-políticos, e não biológicos, os partidários da violência poderão apelar para o fato inegável de que no seio da natureza a destruição e a criação são apenas dois lados do processo, de modo que a violência coletiva, independentemente de sua atração inerente, poderá parecer um pré-requisito para a vida coletiva da humanidade, tão natural quanto a luta pela sobrevivência e a morte violenta para a continuação da vida no reino animal.

O perigo de se deixar levar pela plausibilidade das metáforas orgânicas é particularmente grande onde esteja envolvido o problema racial. O racismo, seja branco ou negro, está impregnado de violência por definição por objetar contra fatos orgânicos naturais – uma pele branca ou negra – que não poderiam ser mudados de modo algum; tudo o que se pode fazer, jogadas as cartas, é exterminar os donos dessas peles. Q racismo, distinto da raça, não é um fato da vida, mas uma ideologia, e as ações a que leva, não são ações reflexas, mas atos deliberados baseados em teorias pseudocientíficas.

A violência nos conflitos raciais é sempre assassina, não sendo, porém “irracional”; é a conseqüência lógica e racional do racismo, que não se resume em alguns preconceitos vagos de lado a lado, mas sim em um sistema ideológico explícito. Sob a pressão do poder; os preconceitos, distintos dos interesses e das ideologias, poderão recuar, conforme vimos acontecer ao movimento pelos direitos civis, que alcançou grande sucesso e que era inteiramente não violento. (“Por volta de 1964 (...) a maior parte dos americanos estavam convencidos de que a subordinação, e a um grau mais baixo, a segregação, estavam errados”.)103 Porém, enquanto os boicotes, demonstrações e sit-ins obtiveram sucesso na eliminação de leis discriminatórias no Sul, mostraram-se eles um total fracasso e tornaram-se contraproducentes ao encontrarem as condições sociais nos grandes centros urbanos – as grandes necessidades dos guetos negros de um lado, e os interesses supremos dos grupos brancos de baixa renda relativos à moradia, educação, etc., do outro lado. Tudo o que essa maneira de agir fez, foi trazer a público estas condições, trazê-las até as ruas, onde o fato de serem os interesses tão irreconciliáveis foi perigosamente exposto.

HANNAH ARENDT