dimanche 11 octobre 2009

Destemor



TENDO JÁ DISCUTIDO o princípio dos três kayas como preparação, podemos agora considerar Padmasambhava como um representante da louca sabedoria em particular, em contraposição a uma outra manifestação qualquer de um vidyadhara. Poderíamos dizer que a qualidade peculiar de louca sabedoria no caso de Padmasambhava é a iluminação instantânea. Os oito aspectos de Padmasambhava não são um processo linear, são um processo simultâneo. De fato, a expressão tradicional é oito nomes de Padmasambhava e não oito aspectos .

O que é esse elemento nome ? Porque é dito nome ao invés de aspecto? Quando nos referimos a aspectos, geralmente estamos nos referindo a diferenças num ser básico. Podemos falar do aspecto de pai de um homem, seu aspecto de professor, seu aspecto de homem de negócios. Nesse uso comum, há a idéia de uma mudança que ocorre nos diferentes papéis. Esta idéia usual de diferentes aspectos que implicaria que Padmasambhava se transforma, penetra partes diferentes de seu ser, ou manifesta diferentes expressões isso não se aplica a Padmasambhava. Pelo contrário, o fato dele ter diferentes nomes está ligado às atitudes de seus alunos e outros seres com relação a ele. Os diferentes nomes tem a ver com as formas diferentes através das quais as pessoas percebiam Padmasambhava, e não com uma mudança relacionada a ele mesmo.

Assim nome está aqui no sentido de título. A sentença tibetana é guru tsen gye, os oito nomes do guru. Tsen é a palavra honorífica tibetana para nome. Algumas pessoas podem ver Padmasambhava como paternal, outras como fraternal, e outras pessoas podem vê-lo como um inimigo. As visões impostas pelas formas em que as outras pessoas o vêem são a base para os oito nomes de Padmasambhava. Ainda assim, sua manifestação única é a louca sabedoria. Uma descrição para uma pessoa de louca sabedoria encontrada nas escrituras é: Ele subjuga o que quer que precise ser subjugado e destrói o que quer que tenha de ser destruído. A idéia aqui é de que não importa o que sejam as exigências de sua neurose, quando você se relaciona com uma pessoa de louca sabedoria, você é golpeado de volta com aquilo. A louca sabedoria concede a reflexão de um espelho. É por isso que a louca sabedoria de Padmasambhava é universal. A louca sabedoria não conhece nenhuma limitação e nenhuma lógica com relação a forma que ela toma.

Se você é feio, um espelho não fará concessões a você. Não faz sentido culpar ou quebrar o espelho. Quanto mais você quebra o espelho, mais os reflexos de seu rosto se multiplicam em seus pequenos cacos. Assim a natureza da sabedoria de Padmasambhava é que ela não conhece nenhum tipo de limitação e não faz concessões. O primeiro aspecto de Padmasambhava é chamado Pema Gyalpo ou, em sânscrito, Padma Raja. Padma Raja nasceu na região dos Himalaias entre a Índia e o Afeganistão, num lugar chamado Uddiyana que agora é chamado Swat. Era um local muito belo cercado de montanhas nevadas. A área toda lembrava um parque artificial. Havia lagos e brotos de lótus; o ar era fresco, o clima ideal. Um dos lagos era chamado Dhanakosha, ou Lago Sindhu. Estava coberto com as folhas e pétalas de lótus. Um lótus em particular era extraordinariamente grande e não seguia o padrão usual das flores ao longo das estações. Ele apareceu no início do Ano do Macaco e continuou a crescer continuamente durante todas as estações. O inverno chegou, a primavera chegou, o outono chegou, o verão chegou, e o lótus nunca abriu. Enfim, no décimo dia do décimo mês do Ano do Macaco, o lótus abriu. Havia uma bela criança lá dentro, sentada no pistilo do lótus. Ele tinha a aparência de oito anos de idade. Tinha um ar digno e cheio de curiosidade. As abelhas e pássaros reuniam-se ao redor dessa bela criança, fazendo-lhe louvores. O som de música era ouvido sem que alguém a tocasse. O local inteiro estava completamente permeado de uma sensação de integridade, saúde e mistério.

A criança parecia um príncipe muito bem cuidado. Como seria possível algo assim? Ele não tinha medo e parecia estar maravilhado pelo ambiente, constantemente fascinado pelo mundo exterior. Assim foi o nascimento de Padmasambhava.

O ponto aqui é a qualidade infantil de Padmasambhava. Ele era um bebê envelhecido isto é uma contradição, é claro um belo bebê crescido, um bebê que não bebia leite ou comia qualquer outra coisa, mas que vivia de ar rarefeito. É por causa dessa juventude que ele é conhecido como Padma Raja, Príncipe do Lótus. Nós também temos este elemento de juventude. Nós temos essa bela qualidade infantil em nós. A experiência que toma lugar na nossa situação cotidiana é a lama que cerca as raízes de um lótus no fundo de um lago. Há desejo, paixão, agressão, neuroses de todos os tipos. Ainda assim, de todas estas coisas, sempre surge algo refrescante: surge nossa qualidade infantil, completamente jovem, curiosa.

A curiosidade de nosso aspecto infantil não é neuroticamente curiosa, mas basicamente curiosa. Já que queremos explorar a profundidade da dor, já que queremos explorar o calor da alegria, fazer estas coisas parece natural. Esta qualidade de Padmasambhava está presente em nós. Poderíamos chamá-la natureza de Buda ou iluminação básica. Poderíamos achar legal pegar um brinquedo, segura-lo, explora-lo, deixa-lo cair, arrasta-lo por aí, ve-lo quebrar, desaparafusa-lo e remonta-lo. Sempre fazemos isto, exatamente como uma criança faz. A qualidade infantil é a qualidade da iluminação. Quando as pessoas falam da iluminação, elas geralmente tem uma idéia de alguém velho e sábio. Uma pessoa iluminada, eles pensam, é alguém que já foi envelhecido pela experiência e assim se tornou sábio; de fato, erudito. Ele colecionou centenas de milhares de pedaços de informação. Isto o torna velho e sábio, confiável e bom iluminado. Mas do ponto de vista da louca sabedoria, a iluminação é totalmente diferente disto. Não tem particularmente nada a ver com sermos velhos e sábios. É mais como ser jovem e sábio, pois tem tremenda abertura com relação a explorar as experiências que ocorrem em nossas vidas na direção de exporá-las psicologicamente, no nível dos relacionamentos, no nível doméstico, no nível prático, no nível filosófico, assim por diante.

Há também uma qualidade de destemor na iluminação, não considerar o mundo como um inimigo, não sentir que o mundo vai nos atacar se não tomarmos conta de nós mesmos. Ao invés disso, há tremendo deleite em explorar o fio da lâmina, como uma criança que por acaso pega uma faca afiada coberta de mel. Ela começa a lambe-la e encontra o gosto do sangue da língua ao mesmo tempo que experimenta com ela. Dor e prazer simultâneos são válidos de serem explorados, do ponto de vista da sanidade da louca sabedoria. Esta [curiosidade natural] é a qualidade de príncipe jovial de Padmasambhava. É a epítome de não se importar tanto mas ao mesmo tempo de se importar demais ter vontade de explorar e aprender.

Provavelmente a palavra aprender está incorreta neste contexto. Não é aprender no sentido de acumular informações; ao invés disso, é absorver o que está acontecendo ao nosso redor, constantemente relacionar-se com estas coisas. Nesse tipo de aprendizado, não aprendemos de forma que no futuro talvez possamos utilizar as informações para nos defender. Aprendemos as coisas porque elas são gostosas de aprender, fantásticas de aprender. É como uma criança brincando. As crianças descobrem brinquedos por toda parte: não são brinquedos educacionais, apenas coisas que estão por aí.

Louca Sabedoria
Chögyam Trungpa


Tradução por Eduardo Padma Dorje (pdorje@zaz.com.br) e Ana Macedo, em setembro de 2001. Instituto
Caminho do Meio em Porto Alegre/RS (http://bodisatva.org).